quinta-feira, 5 de julho de 2012

RESULTADOS DE PESQUISA DO PROJETO AMFALE




  1. ANDRADE, L.A. C. Narrative and identity construction.(monografia)
  2. BARCELOS, A.M.F. Narrativas, crenças e experiências de aprender inglês. Revista Linguagem & Ensino, v.9, n.2, p. 145-175, jul./dez. 2006.
  3. CARVALHO, Fernanda S. Autonomia e Motivação em narrativas de aprendizes de português como língua estrangeiraRevista Brasileira de Lingüística Aplicada, v. , n. 1. p.65-97, 2007.
  4. FRANCO, M.S.; ALVARENGA,M.B. Mapeamento do perfil do(a) professor(a) de inglês das escolas públicas das de Piracicaba: formação e competências  Projetos de Iniciação Científica, financiamento FAPIC/UNIMEP, protocolos CONSEPE 86/04 e 29/05. English Language Teachers in the Public Schools of Piracicaba: profiles of education and competence.
  5. MENEZES, Vera.Multimedia language learning histories. In. KALAJA, P.; MENEZES, V. BARCELOS, A.M.F.(Eds.) Narratives of learning and teaching EFL. London. Palgrave-Macmillan, 2008, p.199-213
  6. PAIVA, Vera L.M.O.Como o sujeito vê a aquisição de segunda língua In: CORTINA, A.;NASSER. S.M.G.C. Sujeito e Linguagem. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009.
  7. PAIVA, Vera L.M.O. Propiciamento (affordance) e autonomia na aprendizagem de língua inglesa In: LIMA, Diógenes Cândido. Aprendizagem de língua inglesa: histórias refletidas. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2010.
  8. PAIVA, Vera L.M.O. O outro na aprendizagem de línguas. In: HERMONT, A.B.; ESPÍRITO SANO, R.S.; CAVALACANTE, S.M.S. Linguagem e cognição: diferentes perspectivas, de cada lugar um outro olhar. Belo Horzionte: Editora PUCMINAS, 2010. p.203-217.
  9. PAIVA, Vera L.M.O.; GOMES, I.F. O outro em narrativas de aprendizagem de língua inglesaPolifonia (UFMT), v. 19, p. 59-80, 2009.
  10. PAIVA, Vera L.M.O.Caos, Complexidade e aquisição de segunda língua. In: PAIVA, V.L.M.O.; NASCIMENTO, M. (Org.) Sistemas adaptativos complexos: lingua(gem) e aprendizagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras/FAPEMIG, 2009. p.187-203
  11. PAIVA, Vera L.M.O.O ensino de língua estrangeira e a questão da autonomia.In: LIMA, D.C. (Org.). Ensino e aprendizagem de língua inglesa: comversas com especialistas São Paulo: Parábola Editorial, 2009. p.31-38
  12. PAIVA, Vera L.M.OAquisição e complexidade em narrativas multimídia de aprendizagem. Revista Brasileira de Lingüística Aplicada. V.8, n.2. p. 321-339.2008.
  13. PAIVA, Vera L.M.O; BRAGA, Júnia de Carvalho Fidelis. The complex nature of autonomy.D.E.L.T.A., v 24. , n. especial p. 441-468, 2008
  14. PAIVA, Vera L.M.O. Narrativas Multimídia de aprendizagem de língua inglesa: um gênero emergente. In: 4o Simpósio Internacional de Estudos de Gêneros Textuais, 2007, Tubarão. Anais/Proceedings. (CD-ROM)Tubarão : UNISUL, 2007.
  15. PAIVA, Vera L.M.O. Letramento digital através de narrativas de aprendizagem de língua inglesa . CROP. n. 12, p.1-20, 2007
  16. PAIVA, Vera L.M.O. Online teacher training and multimidia narratives .Essential Teacher, vol. 3, issue 4, December 2006.
  17. PAIVA, Vera L.M.O. As habilidades orais nas narrativas de aprendizagem. Trabalhos em Lingüística Aplicada. v. 46, n.2.p.165-179, 2007.
  18. PAIVA, Vera L.M.O. Memórias de aprendizagem de professores de língua inglesa. Contexturas, vol. 9, p.63-78, 2006
  19. PAIVA, Vera L.M.O. A Linguagem como gênero e a aprendizagem de língua inglesa In Simpósio Internacional de Estudos de Gêneros Textuais, 3., 2005, Santa Maria. [Anais eletrônicos...] Santa Maria: UFSM, 2006. 1 CD-ROM.
  20. PAIVA, Vera L.M.O. Autonomia e complexidade Linguagem e Ensino, v.9, n.1, p. 77-127, jan./jun. 2006.
  21. PAIVA, Vera L.M.O.Autonomy in second language acquisiton . SHAREAn Electronic Magazine by Omar Villarreal and Marina Kirac N. 146, ano 6, May 6th 2005. (versão em inglês do texto acima)
  22. PAIVA, Vera L.M.O.Autonomia e complexidade: uma análise de narrativas de aprendizagem. In: FREIRE, M.M; ABRAHÃO, M.H.V; BARCELOS, A.M.F (Orgs.). Lingüística Aplicada e Contemporaneidade.  Campinas e São Paulo: Pontes e ALAB, 2005. p.135-153
Toda a produção de Vera Lúcia Menezes de O. Paiva estão em http://www.veramenezes.com/textos.htm

O projeto AMFALE


O projeto AMFALE reúne pesquisadores interessados em investigar aspectos diversos dos processos de aquisição e de formação de professor de línguas estrangeiras através de narrativas de aprendizagem. 

A coordenadora do projeto, Vera Menezes, além de pesquisa específica sobre autonomia, está empenhada em construir um modelo teórico de aquisição de língua estrangeira com suporte da teoria dos sistemas complexos, ou teoria do caos, de um conjunto de teorias de aquisição e de evidências empíricas em narrativas de aprendizagem. Pesquisadores da UFMG e de outras instituições, utilizando diferentes suportes teóricos, estão investigando diversos aspectos através do corpus que está sendo construindo com as narrativas.

Dr. Adail Sebastião Rodrigues Júnior (UFOP)investiga um modelo de análise de narrativas; Dra. Ana Maria Barcelos (UFV), Ms. Luciana Silva e Dra. Mariney Pereira da Conceição (UnB) pesquisam as crenças dos aprendizes; Dr. Diógenes Lima (UESB), questões culturais; Dr. Francisco Quaresma de Figueiredo (UFG), os erros;Dra Laura Miccoli (UFMG) Projeto Accoolher, investigando experiências vivenciadas por professores e estudantes de línguas estrangeiras Ms Liliane Sade (UFSJ) identidades de aprendizes; Dra. Magali Barçante Alvarenga (UNIMEP), as competências do aprendiz; Dr. Ricardo Augusto examina a influência da instrução formal; Ms Rita Augusto investiga o processo de aquisição de língua inglesa na memória de alunos do ensino médio e fundamental; MS Elaine Ferreira do Vale Borges, as referências às abordagens de ensino/aprendizagem; Dra. Rita de Cássia Barbirato (UNIFIAN), o papel das atividades vivenciadas por alunos de Letras durante seu processo de aprendizagem ; Dra. Walkyria Magno (UFPA), investiga autonomia na aprendizagem de LE; Dra. Regina D’Isolla (UFMG), Dra. Norimar Júdice (UFF), aquisição de português como LE. Na área de formação de professores, temos as pesquisadoras Eliane Carolina (UFG), Dilys Karen Rees (UFG), Heloisa Augusta Brito de Mello (UFG), Maria Cristina Faria Dalacorte Ferreira (UFG),Carla Lynn Reichmann (UFPB), Deise Prina e Heliana Melo (UFMG). As duas últimas utilizam as narrativas também como instrumento de reflexão no projeto de extensão EDUCONLE, que visa à formação continuada de professores de inglês e espanhol da rede pública de Minas Gerais.


O Brasil dos cariocas na série Gente Fina
Milena Maximo1
Norimar Júdice2
Resumo: Este estudo teve por objetivo analisar cartuns da série Gente Fina, fazendo uma
prospecção de aspectos socioculturais relevantes no corpus, de modo a refletir sobre as
imagens que emergem da coletânea em foco a partir do olhar crítico e bem-humorado do autor
Bruno Drummond sobre a classe média e média-alta carioca contemporânea. Noções de
cultura e representações sociais são apresentadas, bem como breves considerações sobre a
história do amor no ocidente e sobre o culto ao corpo em nossa sociedade, com o intuito de
embasar a análise do material, que dá ênfase às questões do relacionamento amoroso e ao
papel da aparência no grupo social retratado.
Palavras-chave: Cartuns Gente Fina. Aspectos socioculturais. Classe média e média-alta
carioca. Relacionamento amoroso. Culto ao corpo.
1 Introdução
É inegável que nossas raízes históricas e seus desdobramentos para a realidade
sociocultural brasileira ao longo desses pouco mais de 500 anos originam um quadro muito
particular da “brasilidade”, como observa César Benjamim:
Muitos motivos se somaram, ao longo da nossa história, para dificultar a tarefa de
decifrar, mesmo imperfeitamente, o enigma brasileiro. Já independentes,
continuamos a ser um animal muito estranho no zoológico das nações: sociedade
recente, produto da expansão européia, concebida desde o início para servir ao
mercado mundial, organizada em torno de um escravismo prolongado e tardio,
única monarquia em um continente republicano, assentada em uma extensa base
territorial situada nos trópicos, com um povo em processo de formação, sem um
passado profundo onde pudesse ancorar sua identidade. (BENJAMIM, 2006)
Estudiosos como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Roberto DaMatta – só para citar
alguns – deram contribuições significativas e diversas para a compreensão do que fomos, do
que somos e do que podemos vir a ser.
1 Mestre pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: milenamaximo@yahoo.com.br.
2 Professora da graduação e da pós-graduação em Letras da UFF.
Sem desconsiderar a influência do passado, mas tendo como foco o presente,
buscamos refletir sobre questões socioculturais em um recorte desse universo tão peculiar que
é a realidade brasileira contemporânea. E esse recorte não é feito por um antropólogo,
sociólogo, etnógrafo ou qualquer outro possível estudioso da matéria. É a partir da visão de
um cartunista que pretendemos observar que imagens do povo brasileiro, por meio do humor
e da crítica social, são construídas.
Nosso foco recai sobre a série Gente Fina (doravante GF), de Bruno Drummond, e sua
representação de determinado nicho da sociedade brasileira. Essa série de cartuns é publicada
desde 2004 na revista dominical O GLOBO (do jornal de mesmo nome, que circula
principalmente no Rio de Janeiro). Nosso corpus é formado por 99 cartuns que circularam
entre 2004 e 2006 e foram reunidos na coletânea Gente Fina, publicada em 2007.3
A série retrata, mormente, a classe média e média-alta carioca e, portanto, interessanos
verificar, no corpus, quais aspectos socioculturais são marcantes no conjunto de cartuns
analisados para a caracterização do grupo representado.
Como ocorre com qualquer texto publicado em jornal ou revista, os contextos de
produção e recepção estão isolados. O autor de GF, por conseguinte, tem interiorizada uma
representação do público (ou parte dele) para o qual produz sua série, os leitores de O
GLOBO, classe média e média-alta carioca especialmente.
Drummond estabelece com seu leitor, como todo autor, uma relação mediada pelo
texto. No seu caso específico, a relação é mediada por personagens que, na visão do autor,
configuram o próprio grupo social que lê a série (ou parte dele). Da mesma maneira, o leitor
pode perceber, pelas personagens, a imagem que o autor constrói da classe média e média-alta
carioca e, consequentemente, do seu público (ou parte dele).
Acreditamos que o que Almeida (1999, p. 13-14) escreve sobre os quadrinhos Les
Frustrés, de Claire Bretécher, publicados na revista francesa Le Nouvel Observateur, nas
décadas de 70 e 80, seja bastante apropriado à série GF, que também
(...) funciona como um espaço que permite aos leitores distanciarem-se de si
próprios, terem acesso à sua imagem social a partir de uma perspectiva recuada e
rirem-se de si mesmos. Podem enxergar-se, então, através de uma visão
desvencilhada do compromisso com o sério e com o respeito às instituições e à
ordem estabelecida. Reconhecem, desta forma, suas contradições e seu próprio
ridículo. (...) Por um lado, se é verdade que o leitor ri dos personagens, tal fato não
o impede de se identificar de modo intenso com eles. (ALMEIDA, 1999, p. 13-14)
Para tentar descobrir que brasileiros são esses que Drummond busca retratar em GF,
apresentaremos, nas próximas seções, as concepções de cultura e representação social que
norteiam este trabalho, além de contextualizarmos duas questões proeminentes no corpus: o
relacionamento amoroso e o culto ao corpo. A seguir, procederemos à análise da série com o
intuito de descortinar algumas imagens relevantes no conjunto dos cartuns.
2 Cultura e representações sociais
Neste trabalho, em relação à cultura, seguimos as diretrizes propostas por Geertz
(1989, p. 15), que a considera como as teias de significados que o próprio homem tece e das
quais ele depende para ordenar sua experiência no mundo. Para este autor (op. cit., p. 56), a
cultura não é um complexo de padrões concretos de comportamento (costumes, usos,
tradições, hábitos), mas um conjunto de mecanismos de controle (planos, regras, instruções),
aos quais o homem está profundamente ligado para governar seu comportamento. Diz ainda
Geertz:
A perspectiva da cultura como “mecanismo de controle” inicia-se com o
pressuposto de que o pensamento (...) é basicamente tanto social como público (...).
Pensar consiste (...) num tráfego entre símbolos significantes – as palavras (...),
gestos, desenhos, sons musicais, artifícios mecânicos (...) – na verdade, qualquer
coisa que esteja afastada da simples realidade e seja usada para impor um
significado à experiência. Do ponto de vista de qualquer indivíduo particular, tais
símbolos são dados, na sua maioria. Ele os encontra já em uso corrente (...) e
permanecem em circulação após a sua morte, com alguns acréscimos, subtrações e
alterações parciais dos quais pode ou não participar. (...) ele se utiliza deles, ou de
alguns deles, às vezes deliberadamente (...), na maioria das vezes espontaneamente
(...), mas sempre com o mesmo propósito: para fazer uma construção dos
acontecimentos através dos quais ele vive (...).(GEERTZ, 1989, p. 57)
Rodrigo (2000), que propõe uma visão interacionista de cultura, também faz
considerações de interesse para nossa pesquisa, nas quais há pontos em comum com o
trabalho de Geertz. Para Rodrigo, a cultura está relacionada a modos de pensar, agir e sentir
próprios de determinado grupo em que os indivíduos são socializados. Contudo, a cultura não
é uma abstração, não é algo intangível aos homens. Os próprios indivíduos são construídos
pela cultura e também a constroem, de modo que ela não é algo estanque, mas dinâmico e
complexo. É na interação social, especialmente por meio da linguagem, que há conservação e
inovação em uma cultura.
Rodrigo também reflete sobre a questão da distinção ou diferenciação entre culturas.
Como podemos distingui-las? Ele cita quatro critérios possíveis – língua, religião, gênero e
idade - para, logo em seguida, mostrar que é inútil apoiar-se em apenas um critério (o que
estaria relacionado a uma visão essencialista de cultura). Um espanhol e um chileno falam a
mesma língua, mas não consideram ter a mesma cultura, assim como um judeu catalão não
deixa de ser catalão por ser judeu. Diferenças de gênero e idade, por sua vez, associadas a
diferentes línguas e religiões, produzem culturas distintas.
Rodrigo ressalta que os parâmetros para diferenciar as culturas são múltiplos e que as
combinações desses critérios nos indivíduos são vastíssimas. Portanto, uma característica
marcante das culturas na atualidade é o pluriculturalismo. Tanto na constituição quanto no
estado atual de determinada cultura, há inúmeras manifestações culturais que os indivíduos
consideram serem próprias, mas têm origem em outros grupos que hoje são tratados como
culturas distintas. Além disso, as culturas se formaram e continuam se formando a partir de
contatos entre diferentes comunidades de vida. Segundo o autor, o pluriculturalismo é um
estado de coisas; basta olhar ao redor.
Dentro do vasto domínio cultural, situamos as representações, definidas por Jodelet
(2001, p. 22-23) como fenômenos cognitivos e sociais por meio dos quais os sujeitos se
relacionam a um objeto, reconstruindo-o, interpretando-o e também expressando a si mesmos.
Toda representação social é um saber elaborado e compartilhado socialmente, com o objetivo
prático de colaborar para a construção de uma realidade comum a determinado grupo.
A autora chama a atenção para o fato de que as representações relacionam-se não
apenas a sistemas de pensamento mais amplos, ideológicos ou culturais, e a conhecimentos
científicos, mas também à condição social e à experiência privada e afetiva dos sujeitos. São
influenciadas por instâncias institucionais e por redes de comunicação informal e midiática
(op. cit., p. 21) e, portanto, influenciam os processos de difusão e assimilação de
conhecimentos, definição das identidades pessoais e sociais, expressão dos grupos e as
próprias transformações sociais (op. cit., p. 22).
Almeida (2007, p. 19-20), com a Pesquisa Social Brasileira (PESB) - um estudo que,
entre 18 de julho e 5 de outubro de 2002, realizou 2.363 entrevistas no território nacional -,
observou os core values brasileiros, ou seja, aqueles valores que são os alicerces de todas as
outras crenças sociais e por intermédio dos quais se socializam os indivíduos desde a infância,
como, por exemplo, os que se relacionam a ética, “jeitinho”, família, cor e raça, sexualidade,
igualdade, política, economia e hierarquia, entre outros.
O pesquisador afirma ter demonstrado quantitativamente a tese de Roberto DaMatta
de que o Brasil é um país familista, patrimonialista e hierárquico e, por isso, pode ser
adjetivado com inúmeras palavras que indiquem atraso, retrocesso. Ressalta, contudo, que o
país não é uniforme ou homogêneo.
O autor argumenta em favor da existência de dois Brasis, um arcaico e outro moderno
(op cit, p. 25). Para ele, esse abismo existe em virtude da baixa escolaridade de grande parte
da população. O lado predominante, o das classes baixas e pouco escolarizadas - que defende
o jeitinho, o personalismo, o familismo, a Lei de Talião, uma sexualidade bem marcada e
restrita a práticas consideradas mais convencionais, etc –, tende a se enfraquecer à medida que
a escolarização aumenta. As classes mais altas e escolarizadas, por sua vez, já aderiram a
muitos princípios sociais já dominantes em países desenvolvidos.
A diferença entre os Brasis percebidos por Almeida pode ser ainda maior se, além de
um diploma de nível superior, há outras variantes a considerar: sexo, idade e local de
residência. Se forem comparados um homem jovem, morador de uma capital do Sul ou
Sudeste, e uma mulher de faixa etária mais elevada, residente no Nordeste, mas não em uma
capital, e sendo ele pertencente ao grupo dos economicamente ativos e ela não, a distância
entre modernidade e arcaísmo provavelmente será imensa, indicando que os brasileiros se
dividem em dois grupos distintos em termos de visão de mundo e mentalidade.
Também é importante citar que, segundo Almeida, Roberto DaMatta não apenas
ofereceu uma contribuição antropológica para compreender o Brasil, mas é possível que tenha
desenvolvido um modelo sociológico para pensar as sociedades subdesenvolvidas como um
todo. Nesses grupos sociais, como conseqüência da baixa escolaridade, a maioria da
população tende a apoiar a infração de leis e regras (jeitinho), a acreditar que cada indivíduo
tem um papel social pré-definido (hierarquia), a considerar as relações familiares mais
importantes do que as demais (familismo), a achar que o que é público só deve ser cuidado
pelo Estado, ao passo que deve ser usado como se fosse privado (patrimonialismo), etc.
Segundo o autor, se a escolaridade da população aumenta, esses modos de ver o mundo
entram em declínio.
No entanto, ele prossegue mostrando que há diferenças incontornáveis, como, por
exemplo, o fato de um brasileiro com nível superior ser mais familista e hierárquico do que
um norte-americano que também tenha diploma de terceiro grau. Ele atribui essa distinção à
própria diversidade cultural entre os dois países, que não permite que sejam idênticos nos
aspectos citados. “Cultura existe e importa”, diz Almeida (2007, p. 40).4
Ao tratar especificamente da cultura no Rio de Janeiro, Gontijo (In: GOLDENBERG
2007a, p. 42) chama a atenção para o fato de que uma suposta “identidade cultural brasileira”
vem sendo sempre construída, nas ciências sociais, a partir de traços culturais cariocas, como
se fossem representativos da cultura brasileira como um todo. O antropólogo explica que
elementos como as escolas de samba, a feijoada, a mulata, o futebol e o chope bem-tirado,
entre outros, acabam por transcender a imagem carioca, convertendo-se em símbolos da
brasilidade, divulgados e exportados como tais.
O autor defende a existência de uma “carioquidade”5 ou “identidade carioca global”,
constituída por um repertório de aspectos, dentre os quais ele destaca o culto ao corpo
bronzeado e à praia; a corporeidade e a preocupação com a saúde (física e mental); os modos
de vida alternativos relacionados à autofabricação do corpo e às formas de expressão desse
corpo; a criatividade musical; o ciclo festivo do verão e seu desfecho com o carnaval; a
sexualização das relações sociais e dos mundos; a espacialização social do território (zona sul
x zona norte x subúrbios); o amor pelo futebol e pelas festas esportivas; o sotaque e as gírias;
o apego à cidade e à urbanidade, entre outros.
Esses pontos citados, juntamente com muitos outros - sem serem exclusiva e
totalmente cariocas –, são passíveis de generalização e têm marcado significativamente os
traços identitários brasileiros como um todo (como se o Rio de Janeiro “representasse” o
Brasil). Gontijo (In: GOLDENBERG 2007a, p. 75) ressalta: “Mas o que os faz cariocas é a
maneira como são materializados, experimentados e tornados (...) prática social no cotidiano e
a maneira como se relacionam (...) - ou, ao contrário, não se relacionam – o que gera, pois, um
composto particular”. Isso ocorre porque na cidade do Rio de Janeiro “(...) se desenrolam
situações sociais identitárias típicas de qualquer grande cidade do planeta, porém, em diversos
graus especificadas, particularizadas, ‘tropicalizadas’ ou ‘carioquizadas’ ” (op. cit., p. 44). É a
interseção entre os contextos global e local.
3 Relação masculino / feminino no contexto brasileiro
Del Priore (2005) aponta o fato de que o amor e a sexualidade têm cronologias
próprias, que aparentemente escapam às mudanças políticas e econômicas. Entretanto, foram
os processos de urbanização e industrialização e os avanços científicos, culminando com as
revoluções sociais de 1960 e 1970, que fizeram o mundo – e também o Brasil – passar de um
estágio de proibição do prazer ao direito a ele. Na verdade, a palavra “direito” transformou-se
em “dever”, pois “impôs-se a ditadura do orgasmo. O erotismo entrou no território da proeza
e o prazer tão longamente reprimido tornou-se prioridade absoluta, quase esmagando o
casamento e o sentimento” (DEL PRIORE, 2005, p. 319).
Se, por mais de quatro séculos, os casamentos eram baseados em conveniências
econômicas e nos interesses das famílias, em meados do século XIX, o amor romântico,
nascido com os trovadores medievais, começa a ter mais força na sociedade ocidental e, por
conseguinte, no Brasil. Aqui, com a modernização e a urbanização mais tardias e a
consequente reorganização das atividades cotidianas, houve profundas alterações na vida
emocional dos indivíduos, sendo uma delas uma nova representação social para o casamento.
Agora, o que importa é a escolha do par por amor e atração sexual.
Com o tempo, começa a competir com o amor romântico a ideia de liberdade amorosa
e sexual. A pílula anticoncepcional, trazida para o Brasil na década de 1960, permite a
liberação feminina, fazendo a mulher entrar em um “universo” até então masculino, o do sexo
simplesmente pelo prazer, sem possibilidade de consequências (como uma gravidez, por
exemplo). Começa a haver mais igualdade entre o casal: o marido não é mais um senhor a ser
servido e obedecido. Separações, lentamente, deixam de ser tabus. Começa a circular uma
noção de emancipação feminina e, da Europa e dos Estados Unidos, os movimentos
feministas radicais ecoam em terras brasileiras.
Ao analisar este percurso do amor e da sexualidade (que aqui mostramos muito
brevemente), Del Priore afirma que o presente não é melhor do que o passado e aponta o
papel fundamental da tradição, por meio da família e da procriação, para o funcionamento das
comunidades e para a afetividade dos indivíduos. Prossegue a autora:
Especialistas afirmam que queremos tudo ao mesmo tempo: o amor, a segurança, a
fidelidade absoluta, a monogamia e as vertigens da liberdade. Fundado
exclusivamente no sentimento que sobrou do amor romântico (...), o casal está
condenado à brevidade, à crise. Mais. A liberdade sexual é um fardo para os mais
jovens. Muitos deles têm nostalgia da velha linguagem do amor (...). Hoje, a
loucura é desejar um amor permanente, com toda a intensidade (...). Em uma
sociedade de consumo, o amor está supervalorizado. E o sexo tornou-se nova
teologia. Só se fala nisso e se fala mal, com vulgaridade. (...) há grande contraste
entre o discurso sobre o amor e a realidade da vida dos amantes. (...) Escreve-se
cada vez mais sobre a banalização da sexualidade e o desencantamento dos
corações enquanto o amor mantém-se um sentimento sutil e importante que
continua a fazer sonhar, e muito, muitos homens e mulheres. (DEL PRIORE, 2005,
p. 321)
Osório (In: GOLDENBERG 2007b), ao pesquisar em dois estúdios cariocas (um na
Zona Norte e outro na Zona Sul) as tatuagens de amor, hoje muito procuradas, verifica que,
além de modismo, uma das motivações para a marca do nome, das iniciais ou do rosto do
parceiro no corpo é criar uma ilusão de permanência nas relações em uma época cada vez
mais marcada pelo divórcio, pelo concubinato e pela coabitação. Para a autora (op. cit., p.
104), “a questão parece ser não a realidade concreta, se o amor é duradouro ou não, mas o
desejo de que ele seja para sempre”. Tais tatuagens também são, muitas vezes, símbolos das
relações de poder entre o casal, nas quais o homem, frequentemente, pede a tatuagem como
prova de amor e/ou fidelidade, e o corpo feminino fica marcado como propriedade sua.
Todavia, os domínios da fugacidade também penetram o reino das tatuagens de amor
assim como a tinta penetra na pele. Hoje em dia é possível apagar uma tatuagem – apesar da
demora e do alto valor a ser pago pelo processo – ou, de forma mais prática, “apagá-la”
cobrindo-a com uma outra, muitas vezes a partir do próprio desenho inicial. Osório (op. cit, p.
108) relata vários casos de apagamento da tatuagem e mostra os comportamentos distintos e
conflitantes de duas clientes em relação ao procedimento. Uma acha que as iniciais do
namorado devem ser cobertas quando a relação terminar, pois apenas o presente e o futuro
importam; a outra pensa que a tatuagem não deveria ser modificada, já que o relacionamento,
mesmo se chegar ao fim, fez parte da história de quem se tatuou. Apagar a marca seria apagar
o passado.
4 Culto ao corpo: ditadura da aparência
Goldenberg (2007b, p. 23), com base em Mauss (1974), comenta que o corpo dos
indivíduos está necessariamente relacionado ao e condicionado pelo conjunto de hábitos,
costumes, crenças e tradições de sua cultura. Portanto, o corpo também é uma construção
cultural, típica de cada sociedade, em que certos atributos e comportamentos são valorizados,
ao passo que outros são rejeitados. Sujeito a variações históricas, sociais e culturais, o corpo
“ideal” de dada sociedade é adquirido por meio da imitação prestigiosa, ou seja, os indivíduos
copiam atos, comportamentos e corpos de pessoas de destaque e bem-sucedidas em sua
cultura. No caso do Brasil, especialmente do Rio de Janeiro, os alvos da imitação feminina
são as atrizes, modelos, cantoras e apresentadoras de televisão, que são mulheres de sucesso,
famosas e ricas e que têm o corpo como principal capital.
Durante séculos, o corpo foi relegado ao ostracismo e as pessoas deveriam esquecer-se
de que tinham um. Hoje ocorre o oposto: o corpo passa a ser eixo central da existência e da
afetividade. As técnicas que podem retardar o processo de envelhecimento passam de opção a
obrigação. As diferentes mídias e a publicidade responsabilizam o indivíduo pela construção
da sua própria aparência, expondo-o repetidamente a imagens do corpo perfeito e, assim,
criando pessoas cada vez mais insatisfeitas, que buscam sem cessar melhorar a aparência.
Saem ganhando, dessa forma, os mercados de cosméticos, cirurgias e ginástica, entre outros.
No Brasil, mais particularmente no Rio de Janeiro, o modelo de corpo – que pode ser
adjetivado como “definido”, “malhado”, “trabalhado”, “sarado”, “saudável”, “atlético” e
“bonito” (GOLDENBERG 2007a, p. 36) – é o que não apresenta marcas indesejáveis (rugas,
estrias, celulite, manchas) e excessos (flacidez, gorduras), sendo fruto de construção, esforço,
trabalho e, por vezes, sacrifício, nas academias de ginástica, nas salas de cirurgia plástica,
com o uso de moderadores de apetite e variados produtos e tratamentos estéticos.
Surge, então, um forte antagonismo: ao mesmo tempo em que o corpo se emancipa e
se liberta de antigas restrições sexuais, procriadoras e indumentárias, sofre, hoje, fortes
coerções estéticas, que produzem ansiedade e insatisfação constantes. O corpo passa a ser a
verdadeira roupa; esta é apenas um acessório para a valorização e a exibição da forma física:
Determinado modelo de corpo, no Brasil de hoje, é um valor, um corpo distintivo,
um corpo aprisionado e domesticado para atingir a “boa forma”, um corpo que
distingue como superior aquele que o possui, um corpo conquistado por meio de
muito investimento financeiro, trabalho e sacrifício. No Brasil, o corpo é uma
riqueza, talvez a mais desejada pelos indivíduos das camadas médias e também das
camadas mais pobres, que percebem “o corpo” como um veículo fundamental de
ascensão social e, também, um importante capital no mercado de trabalho, no
mercado de casamento e no mercado sexual. (GOLDENBERG, 2007b, p. 29).
O cabelo é uma das partes do corpo mais usadas pela moda para a significação de
status e, transitando entre o privado e o público, constitui-se como um dos símbolos mais
fortes de identidade individual e social. Consideramos que também para o cabelo se aplica o
que Goldenberg (2007a e b) diz do restante do corpo, ou seja, que deve ser modelado,
transformado, “melhorado” para atender aos padrões de beleza impostos pela mídia e a
publicidade, já que, hoje em dia, não é necessário se conformar com o cabelo com que se
nasce, pois há técnicas variadas que podem mudar completamente o tipo de fio (alisamento,
tinturas). Segundo Sabino (in GOLDENBERG 2007b, p. 121-125), a hegemonia do cabelo
liso (especialmente o loiro) remonta à época do fim do Império no Brasil, com a importação
das modas francesas, as quais, substituídas pela hegemonia americana a partir da década de 30
do século XX, não foram muito alteradas aqui no que diz respeito ao status do cabelo.
A abordagem, feita nesta seção e nas anteriores, da cultura e das representações
sociais, das relações masculino/feminino e do culto ao corpo em nossa sociedade será útil para
a análise de grande parte dos cartuns GF.
5 Elementos contextuais em Gente Fina
O marco temporal, o marco espacial e os participantes são, segundo van Dijk (2005),
alguns dos elementos que devem ser observados quando se estuda o contexto em que se dão
as interações sociais. Embora o autor, na obra citada, estude esses componentes, sobretudo, na
conversação, vamos observar como eles se configuram nas imagens de GF.
5.1 Marco temporal
A série GF inscreve-se na contemporaneidade ocidental, momento da história marcado
por sucessivas transformações da condição humana - fortemente influenciadas pelo avanço
tecnológico que, no quotidiano, otimiza o tempo, encurta distâncias, altera o processo de
comunicação, estimula o individualismo, valoriza o novo, interfere nas formas de
relacionamento e resulta no apagamento das instituições que tradicionalmente costumavam
organizar a existência para os indivíduos. Os laços com o Estado, a comunidade, a família e o
trabalho, por exemplo, vêm se alterando profundamente, e padrões, regras e códigos pelos
quais era possível se guiar vêm sofrendo grandes alterações.
Bauman trata de algumas das características da contemporaneidade, que se caracteriza
pela passagem:
(...) de uma era de “grupos de referência” predeterminados a uma outra de
“comparação universal”, em que o destino dos trabalhos de autoconstrução
individual está (...) subdeterminado, não está dado de antemão, e tende a sofrer
numerosas e profundas mudanças antes que esses trabalhos alcancem seu único fim
genuíno: o fim da vida do indivíduo. (...) A nossa é, como resultado, uma versão
individualizada e privatizada da modernidade, e o peso da trama dos padrões e a
responsabilidade pelo fracasso caem principalmente sobre os (...) indivíduos.
Chegou a vez da liquefação dos padrões de dependência e interação. Eles são agora
maleáveis a um ponto que as gerações passadas não experimentaram e nem
poderiam imaginar (...). (BAUMAN, 2001, p. 14)
As personagens configuradas na coletânea analisada estão sincronizadas com essa era,
apresentando características, desenvolvendo ações e enquadrando-se em contextos inscritos
na atualidade.
Em termos de duração, as interações representadas em GF desenvolvem-se em um
espaço de tempo breve - como se fossem flashes de diálogos do quotidiano.
5.2 Marco espacial
Encontramos no corpus uma predominância de representações do espaço urbano
público, presente em 70 cartuns, seguido pelo espaço privado, registrado em 23. Seis cartuns
não apresentam marcos espaciais. O contexto urbano configurado é o do Rio de Janeiro – um
cartum inclui a imagem de acidentes geográficos que caracterizam esse espaço.
Nesses espaços urbanos públicos representados, aqueles de “comer - beber -
conversar” (cafés, bares, restaurantes) são mais numerosos, somando 37.
Outros espaços públicos frequentemente representados no corpus são praia (em 10
cartuns), locais para atividades físicas (em 7) e discoteca (em 6). Por fim, outros cartuns
enquadram ainda personagens e objetos representados na moldura de: rua/clube durante o
carnaval (em 3), escola / faculdade (em 2), festa (em 1), loja (em 1), praça (em 1), shopping
(em 1) e sinuca (em 1).
5. 3 Os participantes
Os participantes configurados nos 99 cartuns desempenham papéis sociais de amigos,
casais, profissionais e familiares. Predominam as relações entre amigos ou conhecidos (em 59
cartuns) e entre casais (em 40), desde a conquista até o casamento de muitos anos.
Prevalecem, portanto, as representações de interações informais. Os vínculos familiares são
mais raros (apenas em 3), bem como os profissionais (em 4 somente) e os que se estabelecem
entre cliente e funcionário (em 2).
A classe social e o nível de escolaridade não parecem ser propriedades distintivas
entre as personagens representadas, já que são retratadas, mormente, as classes média e
média-alta carioca. Serão características relevantes, no entanto, para o conjunto da série GF,
que traz esse grupo social da cidade do Rio de Janeiro representado e criticado com humor e
ironia.
Os temas, a caracterização física e psicológica e as ações são típicos das classes média
e média-alta carioca, escolarizadas e residentes especialmente da Zona Sul e Barra da Tijuca.
Por exemplo, não há cartuns sobre dificuldades financeiras; a roupa, especialmente a
feminina, é elegante para mulheres por volta de 40 anos que são representadas em bons
restaurantes, ou segue as tendências da moda, no caso de mulheres mais jovens, que deixam o
corpo mais descoberto; os exercícios físicos estão em evidência em muitos cartuns, o que
sugere que as personagens tenham mais tempo e recursos para cuidar da aparência física.
Fazendo uma estimativa, a maior parte das personagens de GF parece representar
adultos jovens, na faixa de idade entre 25 a 35 anos (em 55 cartuns). Em seguida vêm as
representações de pessoas maduras, na faixa entre 35 e 50 anos (em 43), o que pode ser
inferido pela caracterização física, pelas roupas, pelas atividades que realizam, pelos assuntos
de que tratam e pelas questões que focalizam. Personagens representadas como idosos, que
aparentam idade superior a 50 anos, aparecem em um número consideravelmente menor de
cartuns (em cerca de 10), ao passo que adolescentes só estão presentes em um cartum.
6 O universo representado em Gente Fina
Com base na concepção de cultura de Geertz (1989), acreditamos que os brasileiros
partilham um conjunto de planos, regras e instruções, ao qual está ligado seu comportamento.
É importante observar que inscritos nessa cultura brasileira abrangente, distinta de outras
(como, por exemplo, a norte-americana), existem nichos, nos quais determinados grupos têm
crenças, valores e comportamentos específicos.
Parece-nos plausível relacionar o universo representado por Drummond em GF com o
Brasil moderno descrito por Almeida (2007), formado por uma fração de brasileiros adultos
de alta escolaridade (nível superior) e de maior poder aquisitivo, residentes em uma cidade do
Sudeste (no caso, o Rio de Janeiro).
Como afirma Rodrigo (2000), as culturas são sempre pluriculturas e as diferenças de
crenças, valores e modos de agir estão sempre presentes no seio de uma mesma comunidade
de vida. Portanto, há variações mesmo nessa fração do Brasil moderno representada em GF.
Os aspectos culturais e as representações sociais em GF são múltiplos, por vezes
associados a determinados grupos e não a outros dentro da categoria que denominamos “os
cariocas”. Como nos recorda Gontijo (In: GOLDENBERG, 2007a), existem traços culturais
que, embora marcantes para possíveis traços identitários cariocas, não são compartilhados por
todos os cariocas ou só pelos cariocas, além de não poderem ser generalizados.
Ao mostrar esse universo carioca, Drummond dá ênfase a temas variados ligados ao
relacionamento amoroso - presentes em 73 cartuns. Podemos citar conquistas, conflitos no
casamento, traições, entre outros. Além disso, elementos visuais e linguísticos ligados ao
corpo e à sua exposição também são relevantes no corpus.
7 Relacionamento amoroso em Gente Fina
Na esfera das relações amorosas no Brasil moderno (usando nomenclatura de
ALMEIDA, 2007), podemos observar constantemente em GF representações sociais de amor,
sexualidade e casamento e os papéis sociais, por vezes conflitantes, de homens e mulheres.
Tudo isso enfocado no contexto carioca e permeado pelo humor crítico de Drummond.
Na série analisada, amor e sexo não estão necessariamente associados. As relações são
fugazes, superficiais, baseadas no prazer sexual, na satisfação momentânea, sem perspectiva
de uma duração maior (ANEXO, cartum A). Os vínculos afetivos serão cortados quando o
amor e/ou o interesse sexual findarem. Como aponta Del Priore (2005), quando o
relacionamento se apoia unicamente no amor romântico, está sujeito à brevidade. Contudo, o
amor romântico parece dar lugar a uma nova representação – talvez uma “reinvenção” do
amor romântico -, em que existem diversos pares para os diversos momentos da vida, livrando
as pessoas do “tédio” de ter apenas um parceiro. São eles os “amores verdadeiros” tatuados na
pele da personagem (ANEXO, cartum B).
Osório (in GOLDENBERG 2007b), que estuda o fenômeno das tatuagens de amor,
encontra dois pontos de vista distintos em relação à manutenção ou não da tatuagem quando o
relacionamento finda. A personagem de Drummond citada acima parece alinhar-se com a
segunda participante da pesquisa, já que prefere deixar no corpo todas as iniciais dos “amores
verdadeiros” e, dessa forma, manter vivas as lembranças de seu passado, de sua história. O
humor crítico de Drummond, mais uma vez, entra em ação, ao apontar a inutilidade da
tentativa de eternizar o que perece.
O casamento é representado, na maioria das vezes, como o local do marasmo, da
previsibilidade, da frustração, do conflito entre homem e mulher (ANEXO, cartum C). Até
mesmo quando uma personagem não adere a essa representação, ela é vista como uma
exceção, que, mais cedo ou mais tarde, acabará por aceitar a representação do matrimônio
mais partilhada em GF, segundo a qual vinte anos de vida a dois não permitem que a esposa
ainda seja apaixonada pelo marido.
No que diz respeito ao papel feminino, há uma predominância da mulher liberada
sexualmente, ativa na conquista e no sexo, apropriando-se, assim, de identidades
canonicamente associadas ao masculino. Isso é resultado, dentre muitos outros fatores, da
independência financeira da mulher a partir de sua ascensão no mercado de trabalho e dos
avanços científicos que visam a protegê-la de uma gravidez indesejada ou de doenças
sexualmente transmissíveis.
A traição, que é vista como uma opção ao tédio do casamento, reforça a representação
da mulher emancipada, que tem direitos iguais aos do homem, inclusive o de ter casos
extraconjugais. Dos oito cartuns que tematizam a traição, seis retratam mulheres infiéis.
Por outro lado, há um exemplo no corpus da dificuldade feminina em assumir os
diversos papéis que agora lhe cabem: esposa, mãe, dona-de-casa e profissional. O papel
canônico do homem como provedor é invocado no cartum em que a personagem “se cansa”
da agenda feminista e parece querer retornar ao papel tradicionalmente atribuído à mulher de
dependência financeira em relação ao homem. Dessa forma, ela estaria livre da competição do
mercado, da pesada rotina de trabalho, da falta de tempo para conciliar tarefas profissionais e
domésticas, etc. Esse único exemplo ajuda a problematizar os papéis femininos no Brasil
moderno.
O homem em GF também tem variadas representações. Uma delas é a do indivíduo
muito interessado em sexo, normalmente mais do que a mulher. Outra é a da propensão de
trocar sua parceira por alguém mais jovem. Além dessas, o homem é aquele que se gaba das
conquistas; suas proezas amorosas devem ser comentadas na roda de amigos.
Essas representações do sexo masculino são bastante partilhadas na sociedade
brasileira como um todo. No entanto, há um outro papel masculino que emerge junto com a
emancipação da mulher: o homem que não sabe como se comportar diante do novo papel
feminino; o homem que está mais passivo diante da “nova mulher” com quem tem de
conviver ou que se surpreende com determinados comportamentos até recentemente não
associados ao feminino (ANEXO, cartum C).
Por exemplo, no modelo de conduta presente nas revistas femininas das décadas de 40
a 60 (DEL PRIORE, 2005, p. 287), a mulher deveria ser sinônimo de virtude e pureza e nunca
tomar a iniciativa, deixando o homem agir. No cartum D (ANEXO), a personagem feminina,
que está na terceira idade e claramente nasceu em meados do século passado (ou talvez até no
início do século), rejeita o paradigma feminino da época, em que é papel da mulher “frear” os
“impulsos masculinos”. Ao contrário, ela mostra interesse no contato físico entre as pessoas
no carnaval, considerando que essa festa é mais divertida hoje do que em sua época de
juventude, em que havia muito mais recato. O marido, que não fala, reage, por intermédio da
expressão facial, com surpresa ao comentário da esposa. Também essas representações
variadas colaboram para problematizar os papéis masculinos – em contraposição aos
femininos - nos dias de hoje.
Também são objeto de GF as diferenças entre gerações no que diz respeito à
representação de relacionamento e ao papel feminino. Embora a jovem garanta que as rotinas
da relação amorosa continuam existindo, a mulher que possivelmente está entre seus 40 e 50
anos chama a atenção para uma diferença crucial entre as gerações: hoje a troca de parceiros é
uma constante (ANEXO, cartum A).
8 Culto ao corpo em Gente Fina
A valorização da aparência e da juventude também está no foco de GF de diversos
modos. A preferência por personagens jovens (20 a 35 anos) é um deles. Outro é o destaque
dado à praia, local de exposição do corpo, como marco espacial. A prática de exercícios
físicos também evidencia a importância do corpo no conjunto de cartuns analisados.
As personagens jovens normalmente usam roupas curtas, decotadas e que deixam à
mostra determinadas partes do corpo. No cartum E (ANEXO), por exemplo, a personagem da
esquerda está com a barriga descoberta, a do meio deixa os ombros à mostra e a terceira,
usando saia curta e blusa tomara-que-caia, quer realçar pernas, colo, ombros e busto. Além
disso, o assunto da mesa é o tratamento capilar que as três fizeram para alisar os cabelos: a
escova progressiva. O culto ao corpo passa também pelo cabelo, que sofre, mesmo hoje, uma
coerção europeizante, de modo que os fios lisos ainda têm maior status na “hierarquia capilar”
brasileira.
Na praia, o corpo ganha ainda mais destaque em decorrência do uso dos trajes de
banho cada vez menores. Como observa Goldenberg (2007b), o corpo em forma é o único que
está decentemente vestido, ainda que despido. O corpo pode construir toda a imagem
identitária do indivíduo, como vemos no cartum F (ANEXO), em que a personagem
masculina, com a esposa na praia, identifica uma colega de academia que está de costas para o
casal, ou, ainda, quando as personagens fazem comentários – direta ou indiretamente – sobre
os corpos alheios.
A experiência da praia pressupõe uma grande exposição do corpo e da intimidade
entre conhecidos e, especialmente, desconhecidos. Corpos seminus convivem no mesmo local
público, gratuito e de lazer, recebendo diferentes estímulos sensoriais, especialmente visuais e
tácteis, via contato com o ambiente e com os outros indivíduos. Por isso, os frequentadores da
praia estão sujeitos a cantadas e paqueras, como se vê em GF. Além disso, é possível que haja
conflitos entre casais em virtude do interesse ou do desejo que o corpo de outro, e não o do
parceiro, possa despertar.
A representação da prática de exercícios físicos e as roupas usadas pelas personagens
durante as atividades – normalmente justas, realçando as formas - também contribuem, na
série analisada, para o grande destaque dado ao corpo. Cabe lembrar que a praia e seus
arredores se constituem como espaço de atividades físicas também, como observamos em GF.
Drummond reconhece – e mostra em sua série - que, para o carioca, a praia não é simples
local de relaxamento, descanso ou desligamento do mundo, mas um lugar privilegiado para a
realização de esportes e diversas atividades físicas.
Como a afetividade humana também está, em grande parte, nos domínios do corpo,
este, nos momentos de intimidade do casal, está pouco vestido ou, ainda que coberto em parte
pelos lençóis, nu. A própria escolha do autor por situar as personagens no quarto, em
momento íntimo, com pouca ou nenhuma roupa, ressalta a importância que tem o corpo nos
relacionamentos amorosos e os conflitos que ele pode causar. Em determinado cartum, por
exemplo, nega-se o sexo e, por conseguinte, um dos parceiros ficará insatisfeito. Já em outro,
é o corpo masculino que não consegue satisfazer a parceira, criando uma situação
embaraçosa. Em um terceiro percebe-se a supervalorização do corpo e do prazer por ele
proporcionado em uma relação que não tem por base um vínculo afetivo entre os parceiros,
mas apenas sexual, o que frustra as expectativas da mulher. O corpo também é um capital no
âmbito das relações amorosas.
Na esfera da linguagem verbal, o corpo também está em evidência, com referências
explícitas a algumas de suas partes e ao ato sexual, a tratamentos estéticos e à inserção ou não
de determinado indivíduo (principalmente do sexo feminino) nos padrões de beleza atuais.
9 Considerações finais
Este estudo teve por objetivo analisar cartuns da série GF, fazendo uma prospecção de
aspectos socioculturais relevantes nesses textos, de modo a refletir sobre as imagens que
emergem da coletânea em foco a partir do olhar crítico e bem-humorado do autor.
GF retrata predominantemente a classe média e média-alta carioca, jovem (25 a 35
anos), com alto nível de escolaridade, que se enquadra no que Almeida (2007) chama de
“Brasil moderno”, em contraponto a um “Brasil arcaico”, formado por população de baixa
escolaridade, fora dos centros urbanos e de faixa etária mais elevada.
Além do contexto local, o global também é representado em GF, uma vez que, sendo
uma metrópole ocidental contemporânea, o Rio de Janeiro guarda muitas semelhanças em
relação a outras grandes cidades, como, por exemplo, a fluidez das identidades e o
afrouxamento dos laços entre o indivíduo e as instituições.
Destacam-se em GF os temas variados do relacionamento amoroso, tais como
conquistas, conflitos entre casais e traições. As temáticas relacionadas ao amor, aos
relacionamentos e ao sexo estão presentes na maior parte dos cartuns. Neles, sexo e amor não
estão necessariamente associados e as relações estão condenadas à brevidade. As mulheres
passam a assumir um papel mais ativo na relação, apresentando comportamentos
canonicamente marcados como masculinos. Já os homens podem ficar passivos diante da
“nova mulher” com quem têm de conviver.
O culto ao corpo, também significativo na coletânea, pode ser percebido por elementos
visuais e linguísticos e, especialmente, quando é o próprio tema do cartum.
Os interlocutores representados desempenham, principalmente, os papéis sociais de
amigos/conhecidos ou parceiros amorosos. Privilegia-se o espaço público, com o predomínio
de locais de “comer, beber, conversar”, como bares, cafés e restaurantes, seguidos de praia e
lugares para atividades físicas, evidenciando o destaque e a importância que são dados à
exibição do corpo.
Acreditamos que cada cartum GF é um interessante flash do nicho que tenta
representar. Com a mediação do olhar aguçado de Drummond, podemos refletir sobre
aspectos significativos para a classe média e média-alta carioca no contexto das
peculiaridades socioculturais brasileiras e da diversidade existente no seio de cada grupo
social.
Abstract: This paper aims at analyzing cartoons of the series Gente Fina (by Bruno
Drummond) considering relevant sociocultural aspects in the corpus in order to reflect upon
the images that emerge from the texts through the author’s critical yet good-humored view on
contemporary middle and high middle-class in the city of Rio de Janeiro. Concepts of culture
and social representations are presented, as well as brief accounts of the history of love in the
western world and the cult of the body in our society, forming the basis for our analysis of the
cartoons, in which the issues of romantic relationships and the role of physical appearance
are highlighted.
Keywords: cartoons Gente Fina. Sociocultural aspects. Middle and high middle-class in Rio
de Janeiro. Romantic relationship. Cult of the body.
Notas
3 Agradecemos a Bruno Drummond por autorizar a reprodução de cartuns GF neste trabalho.
4 Almeida não apresentou um conceito de cultura, mas acreditamos que a definição de Geertz (1989) mencionada
neste trabalho pode ser aplicada ao seu texto.
5 Termo cunhado por Gontijo (In: GLODENBERG 2007).
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DEL PRIORE, Mary L. M. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2005. p. 282-
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GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. p. 7-98.
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JODELET, Denise. Representações sociais: um domínio em expansão. In:______. As
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http://www.fw.uri.br/publicacoes/linguaeliteratura/artigos/n16_9.pdf

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Português para Estrangeiros

TÓPICOS EM PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA


TÓPICOS EM PORTUGUÊS
COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA
Lygia Maria Gonçalves Trouche (UFF)
Norimar Júdice
 (UFF)
A área de Português para Estrangeiros vem apresentando, nos últimos 15 anos, uma expansão visível. No Brasil, atestam esse crescimento iniciativas como a elaboração de um exame nacional de proficiência, a criação de uma associação de profissionais desse campo de estudos, a realização de eventos, a publicação de coletâneas e de materiais didáticos e ainda a oferta de disciplinas e/ou cursos voltados para a formação de professores de português para estrangeiros.

Os professores que atuam na área, mesmo inscritos nesse quadro que se mostra, em muitos aspectos, animador, ainda se defrontam com dificuldades, que se iniciam quando buscam uma formação teórica e persistem, em sua prática quotidiana, quando do planejamento e do desenvolvimento de cursos e da seleção e elaboração de materiais didáticos.

Neste texto, as autoras enfocam dois tópicos que julgam relevantes para esses professores: a busca de uma abordagem de ensino e sua aplicação em tarefas do quotidiano, como a de selecionar textos para materiais didáticos.

O primeiro tópico, Trouche trata da introdução ao estudo do ensino de Português do Brasil como língua não-materna e discute conceitos de competência e de abordagem comunicativa.

No segundo tópico, Júdice enfoca a lida diária do professor que pretende ensinar a língua e a cultura do Brasil a partir de textos de diversos gêneros. A autora aborda a inserção, em MDs de PLE elaborados no Brasil, de textos verbais e não-verbais autênticos e, fixando-se nesses últimos (em especial na fotografia) , considera questões relevantes para sua seleção e abordagem em atividades que visem ao ensino da língua e da cultura do Brasil.

COMPETÊNCIA E ABORDAGEM COMUNICATIVA
Lygia Trouche
Quando um professor de língua estrangeira se propõe a ensinar uma dada língua algumas questões se impõem de imediata. Por exemplo, como se aprende, como se adquire e como se ensina o uso da língua nos diferentes momentos do dia-a-dia ? Que se entende por linguagem ? Por Comunicação ? Quais os limites aceitáveis de interferência da língua materna na língua-alvo ? O próprio conceito de língua estrangeira deve ser repensado: trata-se de uma língua estranha, de uma fala que não é a minha ?

Enfim, todos esses pontos acrescidos da preocupação didática objetiva: a quem se destina o ensino da LE; com que objetivos o curso deverá ser organizado; como planejar as unidades de ensino, selecionar e produzir materiais, propor experiências com a língua-alvo na sala de aula e fora dela e, ainda, de que modo conduzir a avaliação dos alunos e a avaliação do professor – tudo isto compõe nosso cenário de atuação.

Como vemos, é bastante complexo o painel que se desenha para a atividade didática.

O professor, de modo mais ou menos consciente, é orientado no desempenho de suas tarefas em sala de aula por uma força direcionadora de todo o processo, isto é, de uma abordagem que na definição de José Carlos P. de Almeida Filho (em seu livro Dimensões Comunicativas no Ensino de Línguas) “equivale a um conjunto de disposições, conhecimentos, crenças, pressupostos e eventualmente princípios sobre o que é linguagem humana, LE, e o que é aprender e ensinar uma língua-alvo.”

Neste sentido, a abordagem do professor implica um conjunto de crenças e hábitos, incluindo-se concepções de sala de aula, de pessoa, de papéis de professor e de aluno. Uma dada abordagem de ensino de LE se concretiza, pois, nos procedimentos em sala de aula.

Compõem a abordagem do professor (ainda segundo Almeida Filho, 1993) as seguintes competências: a implícita (teoria informal, subjetiva, intuitiva); a teórica (o conhecimento formalizado sobre a língua); a aplicada ( a explicitação do ensino); a lingüístico-comunicativa (os conhecimentos de âmbito pragmático).

Sabemos, no entanto, que o desenvolvimento destas competências na abordagem de um professor não é a única força atuante. Citamos, também, os filtros afetivos (conceito de Krashen) do professor e do aluno, isto é, as motivações, os bloqueios, as ansiedades, pressões de grupo etc que intervêm no processo de ensino.

Os alunos também possuem sua própria abordagem de aprender resultante de seus hábitos escolares, da tradição de ensino de sua cultura, de suas expectativas em relação à nova língua e, principalmente, à afinidade com a cultura que a língua estrangeira veicula.
Como se vê, há todo um conjunto de fatores muito fortes a interferirem no trabalho de sala de aula de LE. este trabalho visa a aprendizagem pura e simples de regras gramaticais e de uso ou, busca a aquisição de uma língua e de uma conseqüente visão de mundo?
A abordagem do professor definirá os limites destas duas perspectivas.

Creio que para um trabalho produtivo, em que o aprendiz/aluno possa efetivamente usar a LE com um bom desempenho em situações concretas, é importante que o processo seja orientado para a aquisição e não simples aprendizagem de regras formalizadas da gramática da nova língua. Um aluno pode deter um conhecimento metalingüístico, isto é, ser capaz de saber nomes. reconhecer e definir termos, citar regras gramaticais e socioculturais mas, este conhecimento não lhe garantirá nenhuma competência comunicativa.

Entendendo-se o processo de ensino de línguas como aquisição, o aprendiz/aluno, em certa medida, deverá incorporar algumas regras gramaticais mas em função do uso. A competência comunicativa implica também conhecimento e habilidade de realização deste conhecimento. Nem só o conhecimento gramatical, nem só o conhecimento sobre a natureza da comunicação humana são suficientes, isoladamente, para o uso efetivo de uma segunda língua em situações de comunicação real.

Adquirir uma língua significa, pois, desempenho satisfatório em situações concretas de convívio social; significa domínio de regras de uso.
Para esta abordagem, o professor orientará sua prática em sala de aula por uma metodologia comunicativa. Mais do que método, a prática comunicativa privilegia a sala de aula como o lugar da interação social através da produção de sentido que as experiências com a língua estrangeira promovem.

O trabalho com a Língua Portuguesa como língua estrangeira é o de propiciar aos alunos a vivência de novos valores culturais veiculados lingüisticamente em contextos reais de uso concreto.
Trata-se, pois, de um processo de desestrangeirização da língua, de percepção de identidades culturais, de respeito e compreensão das profundas diferenças que delimitam cada povo. Adquirir uma nova língua implica a compreensão e a aceitação de novos valores culturais.

Por todo o exposto fica claro que a abordagem do professor influencia diretamente o método, entendido como o conjunto de experiências que se promovem em sala de aula e fora dela, visando à produção de competência comunicativa.

Apresentamos, a título de exemplificação, alguns procedimentos metodológicos comunicativos:

* Desempenho de uma seqüência de atos como os de cumprimentar, socializar casualmente, convidar, arranjar pormenores, despedir-se, desculpar-se, recusar um convite, obter informações;

* descrição de um aparelho ou experiência com o auxílio de um objeto ou sua representação gráfica, explicação de um mapa do campus universitário;

* apresentação de aspectos folclóricos brasileiros;

* explicação de cartuns publicados no jornal;

* descrição e comentário de pequenas gravuras;

* receitas de comidas típicas do Brasil e dos países dos estudantes;

* estudo de textos de música popular brasileira;

* calibragem de um início de conversa com um superior hierárquico ou desconhecido na rua, para atuar no registro adequado da fala.
Sugerimos, ainda, algumas atividade que concebemos como comunicativas, interativas, dinamizadoras de reflexão. Além disso, implicam integração de habilidades, contato com textos orais e escritos de modalidades variadas e registros diferentes.
Estas atividades visam também expandir o trabalho que começa na aula, através da negociação intercultural – professor e alunos.
Vejamos alguns breves exemplos:

* De dois em dois dias, o aluno dedica 15 minutos de aula à escrita de um texto sobre o seu quotidiano. De quinze em quinze dias, dedica, em aula, meia hora, à leitura de um texto-resposta produzido pelo professor ou bolsista.

* Um estudante faz um relato oral a um colega sobre um percurso que este último tem necessidade de conhecer ( ex.: caminho para a biblioteca, para o banco etc).

* A cada semana, quatro alunos acompanham o noticiário de um determinado jornal (por exemplo, a seção de esportes, política, turismo e economia ). Cada um escolhe, na seção que lhe for destinada, a notícia que julgar mais interessante e faz uma síntese oral da mesma para a turma. A síntese é seguida de discussão.

* Estudantes redigem receitas de pratos típicos de seus países. Os textos devem ter duas partes: ingredientes e modo de preparar.

* Pesquisa com os colegas brasileiros, vizinhos, pessoas da comunidade para a realização de um levantamento de remédios caseiros e sua eficácia. Comparação com a mesma prática no país de origem do aluno.
Ensinar uma língua estrangeira, sob o ponto de vista que vimos desenvolvendo, é uma questão de abordagem comunicativa, na medida em que discute e propõe a construção de um saber que se faz na constante integração com o “outro”, na troca social, na linguagem.
Podemos afirmar, seguindo Prabhu, lingüista indiano, que não existe o melhor método; existe, sim, o que é plausível para o professor.
Para nós, plausível é compreender o grande potencial metodológico comunicativo, é acreditar que um professor não pode ser um aplicador de teorias e métodos “importados”, mas alguém com postura crítica e teoria explicitável sobre uma prática pedagógica consciente.

Resumindo

1-ABORDAGEM – como competência implícita configura o conjunto de conhecimentos, crenças, intuições sobre a linguagem humana, língua estrangeira e o processo de aprendizagem de uma língua; como competência explícita, trata-se da utilização consciente de uma teoria de ensino formalizado. A abordagem, portanto, fundamenta essencialmente todo um processo específico de aprender.

Natureza da comunicação

* É uma forma de interação social e, em conseqüência, se adquire normalmente e se usa mediante a oportunidade de interação social.

* Implica um alto grau de imprevisibilidade e criatividade em forma e conteúdo.

* Acontece em contextos discursivos e socioculturais que regem o uso apropriado da língua e oferecem referências para a correta interpretação das expressões.

* Realiza-se sob limitações psicológicas e outras condições como restrições de memória, cansaço e distrações.

*Tem sempre um propósito ( por exemplo, estabelecer relações sociais, persuadir , perguntar etc.).

* Implica uma ‘língua autêntica’, oposta a ‘língua artificial’ dos livros de texto.

* Julga-se que se realiza com êxito ou não de acordo com os resultados concretos.
O PROCESSO DE DESESTRANGEIRIZAÇÃO de uma língua implica a percepção de identidades culturais, de respeito pelo outro e de compreensão das profundas diferenças que delimitam cada povo. Adquirir uma nova língua implica a compreensão de novos valores culturais, de nova interpretação do mundo.
Para atender a esses pressupostos, será preciso que o material didático seja compatível com a abordagem e com os objetivos e planejamento do curso.

Materiais didáticos
para o ensino do Português do Brasil
para Estrangeiros: seleção de textos
e representações da cultura-alvo
Norimar Júdice
À medida que a literatura da área de Lingüística Aplicada ao Ensino de Língua Estrangeira passou a postular o uso na sala de aula de textos autênticos e representativos da realidade articulada à língua-alvo, os autores de materiais didáticos, entre eles os de livros didáticos de Português Língua Estrangeira (PLE) , começaram a tentar trabalhar nessa linha.

Se lançarmos um olhar retrospectivo aos materiais didáticos brasileiros destinados ao ensino/aprendizagem de PLE, verificaremos que, na década de 80, alguns deles, como Tudo Bem, de Raquel Ramalhete, já revelam tentativas de trazer à sala de aula documentos autênticos verbais e não– verbais.

Com a entrada nesse espaço desse tipo de documento, que funciona, segundo Zarate (1995: p.101) , como uma espécie de concentrado da realidade, o quotidiano brasileiro se torna objeto legítimo do ensino do português para falantes de outras línguas. Ou seja, passa a ser trazida à sala de aula de PLE e a ser oferecida a aprendizes e professores, que muitas vezes travam contato com a língua-alvo em situação de não-imersão, uma espécie de realidade capsularizada do contexto de origem dessa língua.

Para os autores de livros didáticos de PLE voltados para o ensino da modalidade brasileira – inscrita em uma realidade multifacetada – essa operação aparentemente simples de busca de documentos autênticos verbais e não-verbais dela representativos constitui um permanente desafio, pois observar, recortar, articular e capsularizar o quotidiano disperso por uma infinidade de textos em circulação em nosso contexto para oferecê-lo a professores e aprendizes exige uma boa dose de sensibilidade e habilidade.

Nos quase 20 anos que se seguiram à publicação da obra de Ramalhete, é possível observar, em relação às amostras de textos autênticos incorporadas aos materiais didáticos de PLE, que aquelas de textos verbais – numerosas e variadas – geralmente revelam uma escolha mais feliz do que as de textos não-verbais, que não deixam entrever a mesma atenção por parte dos autores. Dessa observação, fica a impressão de que não foi amplamente percebido pelos autores de livros didáticos destinados ao ensino de nossa língua e cultura que, para o aprendiz, ler imagens do Brasil e ir tecendo textos verbais na língua-alvo constitui atividade tão importante quanto ler textos verbais e ir construindo imagens e representações do Brasil.

Embora, nos livros didáticos de PLE publicados no Brasil no período citado, possamos observar textos não-verbais autênticos, como fotografias, quadrinhos e alguns poucos cartuns, esse material, em sua maioria, parece ter mais uma função ilustrativa do que desencadeadora de oportunidades de ler e produzir textos de forma refletida e de construir representações da cultura alvo.

A fotografia em MDs de PLE

Neste texto, por questões de espaço, vamos nos restringir a considerar a questão do material fotográfico – importante recurso para manuais de ensino de língua e cultura. Nos livros didáticos para o ensino do português do Brasil, sua escolha e articulação tem recebido muito pouca atenção. Encontramos freqüentemente material fotográfico pouco representativo, fragmentado, descontextualizado, sem indicação de autor e fonte, com dimensão e impressão que dificultam a leitura e, em geral, mal explorado como insumo textual para o ensino de língua e cultura.

É lamentável esse descaso, porque a fotografia constitui uma forma significativa de captar o dia-a-dia. E, é claro, também representa um meio privilegiado de propiciar leituras múltiplas desse quotidiano, pois sua capacidade ímpar de flagrar instantâneos permite que cada leitor a interprete com sua própria sensibilidade e perspectiva.
Ressalta Vanoye (1986: 190):

Uma fotografia não veicula apenas uma mensagem referencial; sua preparação (enquadramento, proporções respectivas dos objetos, luminosidade, cores etc) sua montagem (relação eventual com outras fotografias que a seguem ou precedem) carregam-se de conotações.

No que diz respeito ao material fotográfico incluído nos livros didáticos de PLE publicados no período em questão tendo em vista o ensino de Português do Brasil, temos observado até que alguns manuais de ampla circulação, editados no país após o ano 2000, veiculam imagens nitidamente não-nacionais, apresentando como representações da realidade brasileira fotos que constituem flagrantes de outros contextos, numa nítida descaracterização de nosso país, povo e cultura.

Esses materiais didáticos, embora sejam apresentados em edições cuidadas, nas quais se observa, por exemplo, formato adequado e impressão de boa qualidade, não revelam um recurso produtivo à imagem fotográfica. Neles, pode-se encontrar, destacadas em abertura de unidades e/ou inseridas no interior das mesmas, fotos que não flagram faces e espaços característicos do contexto em que se fala a língua-alvo.

A questão do uso inadequado da fotografia em livros didáticos não se restringe aos materiais de PLE, já tendo sido abordada por Zarate (1995:110-111) , em estudo sobre escolha de documentos para integrar manuais de línguas estrangeiras:

Nos manuais, os documentos iconográficos apresentam freqüentemente uma referenciação pouco legível e funcionam mais como ilustrações destinadas a ritmar agradavelmente a página que como verdadeiros documentos. O formato do manual impõe freqüentemente reduções que afetam a legibilidade: o editor prefere multiplicar as fotos do que oferecer uma só reprodução de excelente qualidade que permita um trabalho minucioso de observação. Os documentos iconográficos são raramente datados, sua assinatura é difícil de ser encontrada, sendo freqüentemente relegada ao final do manual com a menção dos direitos do autor. O fotógrafo não é percebido como um autor por inteiro.

O autor de MDs de LE deve – com a mesma atenção que caracteriza o trabalho do fotógrafo, que busca determinado instante, movimento, luz, gesto, face – selecionar e articular os textos que incluirá em seu livro. Para esse autor, são necessárias sensibilidade e habilidade, pois, ao selecionar documentos não– verbais e verbais para inclusão em seu material didático, estará lidando com a construção de representações da cultura-alvo e com a escolha de um ponto de partida para atividades de leitura e produção de textos. No que se refere ao trabalho conjunto de professor e alunos estrangeiros, o texto fotográfico revela-se como uma porta que, na sala de aula de LE, pode ser aberta para a realidade, permitindo ao aprendiz dela observar diversificados ângulos.

Segundo Júdice (2005: 37), nas atividades de leitura/produção a partir de fotografias, o aluno pode ser levado a (re) construir, em sua ótica, a porção do real enfocada pelo artista e trazida pelo professor para a sala de aula, observando atentamente itens como: a) o enquadramento da imagem; b) os elemento (s) representado (s) e suas peculiaridades; c) a captação de aspectos dinâmicos ou estáticos; d) a maior ou menor definição de cada ângulo; e) a articulação dos planos; f) o jogo de claro/escuro; g) a presença ou ausência de brilho; h) a escala cromática; i) a articulação da imagem à palavra (que pode surgir em legenda ou título).

Esse tipo de texto não verbal constitui um importante recurso para o ensino de língua e cultura para estrangeiros quando tomado como ponto de partida para atividades de leitura e produção textual, visto que pode captar flagrantes significativos da cultura – alvo (que muitas palavras escritas não traduziriam!) , trazê-los ao aprendiz , fazê-lo refletir sobre eles e levá-lo a dizer – na língua-meta – a nova realidade com que se depara, em contraponto com a sua, nela (s) (re) posicionando-se.

Conclusão

Para selecionar, referenciar, articular e abordar adequadamente, em propostas de atividades de ensino/aprendizagem de LE, textos não– verbais e verbais diversificados, o autor de MDs e o professor de PLE precisa ter consciência das características gerais do (s) gênero (s) escolhido (s) e das especificidades de cada texto no que diz respeito à sua composição, ao seu tema, às representações do Brasil e dos brasileiros que traz para a sala de aula e às oportunidades de interação que é capaz de promover.

Bibliografia

Alemida Filho, J.P.CJ.C.P. Dimensões comunicativas do ensino de línguas. Campinas: Pontes, 1993.
Júdice, N. O ensino da língua e da cultura do Brasil para estrangeiros: pesquisas e ações. Niterói: Intertexto, 2005.
Ramalhete, R. Tudo bem. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1985.
Vanoye, F. Usos da linguagem: problemas e técnicas da produção oral e escrita. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
Zarate, G. Représentations de l’étranger et didactique des langues. Paris: Didier, 1995.

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