A Formação de Palavras na Gramática Histórica da Língua Portuguesa de Manuel SaidAli
Maria do Céu Caetano
(Universidade Nova de Lisboa)
(Universidade Nova de Lisboa)
Introdução
A minha participação tem
como objetivos discutir o conceito de gramática histórica, evidenciar a relação
entre a estrutura da Gramática Histórica de Said Ali ([1931] 19643)
e os princípios teóricos defendidos pelo autor, dando especial ênfase à área da
Formação de Palavras e, dentro desta, às descrições dos sufixos e da estrutura
interna das palavras complexas sufixadas.
Num trabalho mais vasto
apresentado em 2003 (cf. Ref. Bibliog.), explico detalhadamente os critérios de
delimitação do corpus das Gramáticas Históricas do Português (GHP), que
me serviu de análise, pelo que, antes de passar às questões colocadas pela
própria definição de "gramática histórica", referirei brevemente como
foi constituído esse corpus.
Desse corpus fazem
parte as GHP em que é tratada a formação de palavras (cf. Anexo 1), tratando-se
de um corpus à partida seletivo e delimitado cronológica e quantitativamente.
A delimitação cronológica prende-se com o período de publicação das gramáticas
históricas, o qual se situa entre os fins do século XIX e a primeira metade do
século XX, mais concretamente, entre 1876 (cf. Grammatica Portugueza
Elementar, Teophilo Braga) e 1946 (cf. Lições de Filologia Portuguesa,
Carolina Michaëlis Vasconcellos), à exceção de História e Estrutura da
Língua Portuguesa, de Joaquim Mattoso
Câmara Jr., publicada em 1975.
Os princípios que
autorizaram a inclusão das obras no corpus não se ficaram a dever à
designação que ostentam, a qual, por si só, não é elucidativa da natureza das
mesmas. No trabalho atrás referido demonstrei que as chamadas gramáticas
históricas 'didáticas' são, também elas, uma fonte preciosa no que toca a dados
e a descrições conducentes ao estudo da morfologia derivacional numa
perspectiva diacrônica.
Conceito de Gramática
Histórica
No artigo "A
Tentative Typology of Romance Historical Grammars", Malkiel ([1960] 1968)
discorre longa e profundamente sobre as gramáticas históricas românicas mais
marcantes: define o conceito e apresenta os vários tipos de gramática
histórica, a sua estrutura e conteúdo, a apresentação, as relações com outros
domínios lingüísticos, etc. Embora ressalvando que a definição fornecida é uma
das possíveis, Malkiel ([1960] 1968: 72-73) afirma que gramática histórica é
"uma organização formal de dados estritamente lingüísticos que dizem
respeito mais à estrutura do que ao léxico e que são interpretados numa
perspectiva diacrônica; ou seja, pressupõe-se pelo menos a existência de dois
conjuntos de formas paralelas separadas por um período de tempo suficientemente
extenso (...). Toda a gramática histórica é, por definição, comparativa e a
comparação requerida consiste numa confrontação ponto por ponto de dois
estádios sucessivos razoavelmente distantes da mesma língua". Foi, pois,
este o conceito de gramática histórica que retive, por se tratar de uma
definição que precisa vários aspectos: a análise diacrônica incide sobre dados
estritamente lingüísticos, excluindo a descrição de fatos históricos, mesmo que
eles tenham exercido influências a nível da língua (por exemplo, a introdução
no léxico de certos vocábulos ou expressões, resultantes de contacto); a
descrição dos dados deve estar criteriosamente organizada, obedecendo,
portanto, a uma estrutura bem definida, o que leva à exclusão de muitos estudos
diacrônicos (monografias, lições, antologias, edições críticas, volumes de
homenagens, por exemplo), os quais não se inserem dentro da categoria de
gramática histórica devido à sua "inerente dispersão e seletividade",
casos em que os aspectos formais estão submetidos ao léxico e não o inverso; a
gramática histórica é sempre comparativa, ao passo que uma gramática
comparativa pode ou não ser histórica, e essa comparação é feita de forma
sistemática entre dois estádios, razoavelmente distantes, de uma mesma língua.
Na grande maioria das gramáticas históricas das línguas românicas, embora não
sendo uma condição estritamente necessária, a comparação consiste na
confrontação entre o Latim e o estado atual de uma língua e pode seguir duas
direções: prospectiva, quando o ponto de partida é o mais antigo de dois
estádios de língua ou o mais antigo das várias fases consecutivas que se estão
a comparar, e retrospectiva, se a análise de uma língua românica moderna for
pontuada com a invocação dos antecedentes latinos ou medievais.
A amplitude e a dimensão
temporal das gramáticas históricas estão inter-relacionadas e determinam, em
parte, quer a estrutura das mesmas, quer o método seguido. Não é o número de
disciplinas contempladas por cada um dos autores que, só por si, serve de
indicador da maior ou menor relevância de uma gramática histórica, mas antes o
tipo de análise (ampla e profunda) que é efetuado.
É objetivo comum aos
vários gramáticos históricos considerados a descrição da evolução da língua
portuguesa, desde a origem até ao período que se pretende estudar, ou seja, em
todas as obras em análise, assiste-se a uma extrapolação do passado para o
presente, sendo o latim o ponto de partida e o português da época contemporânea
o ponto de chegada. Daí que, como seria de esperar, os vários autores elejam o
método (histórico‑)comparativo, quer para estabelecer a comparação entre
estádios diferentes do português, quer se trate de comparar o português com
outras línguas românicas. Mas o fato de a diacronia ser sempre privilegiada,
tendo em conta o seu poder explicativo, não significa que se despreze a
sincronia (ou as várias sincronias), pois, por vezes, é a descrição da língua
contemporânea que se assume como objetivo central e, nestes casos, a
extrapolação é feita do presente para o passado, se bem que o presente seja
sempre tido como o resultado da evolução verificada ao longo dos tempos.
No "Prólogo da
Gramática Histórica", Manuel Said Ali ([1931] 19643: 11)
declara que se tratava de "uma gramática histórica que, sem desprezar a
evolução do latim para o português, estudava particularmente as alterações do
idioma nas diversas fases do português histórico, isto é, no largo período
decorrido desde o tempo que se conhece o português como língua formada e usada
em documentos". No "Prólogo da Lexeologia do Português
Histórico"[1], o gramático afirma
que encontrou a solução de certos problemas recorrendo diretamente às fontes,
tendo averiguado que "certas teses sabidas em parte se confirmavam, em
parte porém se tornavam insustentáveis. Além disso, o estudo comparado do ponto
de vista evolutivo veio revelando, com grande surpresa minha, fatos
lingüísticos cuja existência a princípio nem suspeitava. (...) Adotado
semelhante método de pesquisa, adquiriu o livro certo aspecto de lexeologia
semântica, ou, se preferirem, de semântica lexeológica, destoando assim de
vetusto sistema de classificação", advertindo que "deixará de ser
histórico o estudo de vocábulos que desprezar as alterações semânticas"
(ALI [1931] 19643: 7). Assim, Said Ali considera que é mais
importante o confronto do português da época com o português arcaico e não a
comparação com o latim, posição que contribui para uma diferenciação
relativamente aos gramáticos seus contemporâneos e que irá determinar a
organização e o conteúdo da sua obra.
Estrutura da Gramática Histórica de Said Ali
Antes de descrever a estrutura da Gramática
Histórica de Said Ali e, por inerência, das restantes GHP, relembro que a
Fonética, a Fonologia e a Morfologia Flexional têm, de longe, uma maior
representatividade nessas obras, enquanto a Formação de Palavras, a Sintaxe e a
Semântica se vêem relegadas, freqüentemente, para um plano secundário. Todavia,
isso não significa que, por um lado, estas três últimas áreas não forneçam
dados e análises relevantes e, por outro, que os aspectos tratados e as abordagens
empreendidas nas três primeiras áreas sejam uniformes.
Uma vez que o objetivo principal deste ponto é
analisar o enquadramento da Formação de Palavras na Gramática Histórica de Said
Ali, darei especial ênfase à secção, capítulo ou ponto e respectivas
designações em que está inserida essa área, bem como às partes em que a mesma
se subdivide.
Alguns gramáticos consideram que a Formação de Palavras deve ser
estudada dentro da Morfologia (Teófilo Braga
(1876), Manuel P. Silva Jr. e Lameira de Andrade ([1887] 19134),
António G. Ribeiro Vasconcellos (1900), José J. Nunes ([1919] 19899),
Brandt Horta ([1930?] s.d.3), Jaime S. Martins ([s.d.] 19372),
Francisco J. Martins Sequeira ([1938a] 19593) e Francisco J. Martins
Sequeira (1938b)), enquanto outros a estudam dentro do Léxico (Eduardo C.
Pereira ([1916] 19359), Ismael Coutinho (1938) e Mattoso Câmara Jr.
(1975)) e outros, ainda, lhe conferem um tratamento independente (Carl von
Reinhardstoettner (1878), J. Leite
Vasconcellos ([1911] 19593), Othoniel Mota ([1916] 19378),
Manuel Said Ali ([1931] 19643), Joseph Huber ([1933] 1986) e
Carolina Michaëlis de Vasconcellos ([1946] s.d.)). Os primeiros interessam-se
sobretudo pelas alterações semânticas, resultantes da junção de prefixos e
sufixos ou desinências, como muitas vezes são chamados; para os segundos, o
mais importante é demonstrar que o alargamento do léxico se faz através da
prefixação, sufixação e composição, entre outros processos; o objetivo dos
terceiros consiste em descrever e explicar os processos de prefixação,
sufixação e composição em si mesmos e não somente o seu resultado, isto é, o
fato de contribuírem para o enriquecimento lexical. Para que se possa avaliar
melhor a representação das várias Áreas Disciplinares consignadas nas
Gramáticas Históricas do Português e a importância atribuída à Formação de
Palavras, observe-se o Anexo 2[2]. Independentemente do seu grau de autonomia e do
maior ou menor desenvolvimento que lhe é dedicado, aquilo que se pode deduzir é
que a Formação de Palavras ocupa, na realidade, um lugar bastante central,
sendo estudada em todas as gramáticas em análise.
Nestas gramáticas nem sempre há uma ligação estreita entre a
terminologia utilizada pelos vários autores e a estrutura dessas obras. Por
exemplo, o título História e Estrutura da Língua Portuguesa, de Mattoso
Câmara Jr. (1975) denuncia a forte influência estruturalista, mas esta é uma
gramática que, em muitos aspectos, segue o modelo instituído pelos
neogramáticos, enquanto a gramática de Manuel Said Ali ([1931] 19643),
embora tendo sido escrita durante a vigência do modelo neogramático, se
distingue pelas suas inovações a nível teórico, metodológico e terminológico,
sendo, por isso, das gramáticas que constituem o corpus aquela que mais
se diferencia das outras. Deste modo, facilmente se concorda com Martins (1995:
63), quando a mesma declara que, apesar de "realizada em plena época
neogramática, a gramática histórica de Said Ali destaca-se por não se enquadrar
em tal modelo", o que faz com que, alicerçando-se em Malkiel (1960), a
apelide de "modernista".
A primeira edição da Gramática Histórica da Língua Portuguesa
de Manuel Said Ali ([1931] 19643) fez-se, como é sabido, em dois
volumes e em datas diferentes: A Lexeologia do Português Histórico,
dividida em "Os sons e sua representação" e "Os vocábulos"
surgiu em 1921, A Formação de Palavras e Sintaxe do Português Histórico,
constituída por "Formação de Palavras", "Sintaxe" e
"Apêndices", foi publicada em 1923. Numa segunda edição, estas duas
obras foram reunidas no volume intitulado Gramática Histórica, com data
de 1931. Esta gramática apresenta, então, uma estrutura dupla. Sob a "1ª
Parte – Estudo dos sons e Lexeologia", o autor descreve vários aspectos
fonético-fonológicos e flexionais, optando por estudar os diminutivos e
aumentativos quando se refere ao grau dos substantivos (cf. o subponto
"Nomes" (p. 54-75), em "Os vocábulos: espécies, formas e
significação" (p. 53)). Na "2ª Parte – Formação de palavras e Sintaxe
do Português Histórico", o autor começa por tratar a "Derivação em
geral" (p. 229), a qual se subdivide em "Derivação sufixal" (p.
232-248), "Derivação prefixal" (p. 249-253), "Derivação parassintética"
(p. 254-255) e "Derivação regressiva" (p. 256-257). Seguidamente é
estudada a "Composição" (p. 258-264), que, conjuntamente com a
"Derivação", constitui a área da "Formação de Palavras".
Com quase cem páginas, a Sintaxe (p. 265-361) ocupa a parte final da obra de
Ali ([1931] 19643), a que se seguem ainda três Índices.
Cabe aqui realçar dois aspectos muito importantes, quer em termos da
estrutura da obra, quer relativamente aos princípios teóricos: em primeiro
lugar, o autor, tal como C. Reinhardstoettner (1878), M. P. da Silva Jr. e L.
de Andrade ([1887] 19134), O. Mota ([1916] 19378) e J. J.
Nunes ([1919] 19899) antes e Joseph Huber ([1933] 1986) e I.
Coutinho (1938) depois de si, designa por Formação de Palavras a área que
estuda a derivação e a composição, mas a descrição exaustiva da estrutura
interna das palavras complexas, dos elementos afixais e dos mecanismos de
formação de palavras não encontra paralelo nos outros trabalhos que fazem parte
do corpus. Por outro lado, não inclui a prefixação dentro da composição
mas sim na derivação própria, justificando essa não inclusão por achar que os
prefixos, tal como os sufixos, são "elementos formativos" sem
autonomia (cf. Ali [1931] 19643:
229) , especificando que o sufixo "procede também de expressão que a
princípio se usou como palavra independente".
O estudo da Sufixação
na Gramática Histórica de Said Ali
na Gramática Histórica de Said Ali
Todos os gramáticos estudados apontam a derivação e a composição como
os processos que mais contribuem para o enriquecimento e desenvolvimento do
léxico, independentemente do objetivo que os move, i.e., quer se centrem na
procura das formas primitivas a partir das quais se desenvolveram as formas
atuais, quer pretendam descrever as formas arcaicas remanescentes, sendo usuais
as oposições de "vivo"/"morto" e "atual"/"arcaico",
quando se trata de assinalar a vitalidade ou produtividade de determinados
afixos e a disponibilidade de alguns processos, relativamente a outros que
deixaram de dar origem a palavras morfologicamente complexas.
A sufixação é tida, em muitos casos, como sinônimo de derivação
própria e a "fecundidade" deste processo antevê-se nas largas
descrições e análises efetuadas nas obras que fazem parte do corpus. Com
efeito, para além da questões da produtividade ou improdutividade de
determinados sufixos e das alomorfias que os mesmos sofrem e desencadeiam
(aspectos que também são considerados por alguns gramáticos a propósito da
prefixação), o fato de uma grande parte dos sufixos desencadear alterações
categoriais e as idiossincrasias associadas a certos derivados contribuem para
uma maior complexidade desta área.
Para além de rejeitar a inclusão da prefixação na composição, Said Ali
rejeita igualmente o fato de alguns gramáticos considerarem que o estudo da
derivação imprópria faz parte da derivação, pois, segundo afirma, "a
mudança de sentido e de função que sofrem as palavras, examina‑se em outras
partes da gramática, e, a dedicar‑se uma parte especial a tão interessante
assunto, deverá denominar‑se semântica e não derivação" (ALI [1931] 19643:
230-231).
O gramático chama oportunamente a atenção para a dificuldade, por
vezes, existente em estabelecer uma relação transparente entre a palavra
derivada e a palavra primitiva, sobretudo quando, decorrente da "evolução
de forma e sentido, (...) surge um curioso conflito entre o sentimento geral do
vulgo e o fato encarado à luz da pesquisa científica" (ALI [1931] 19643:
231), dando como exemplos esquecer e receber. Apesar de ambos
serem tidos como verbos primitivos que estiveram na base de outros derivados
(ex.: esquecimento), o primeiro é "alteração de escaecer e
palavra derivada, em última análise, de caer, forma antiga de cair
(...) [o segundo,] para quem fala e pensa em português, é outro verbo
primitivo; se lhe lembrarem que re– é elemento formativo, objetará que
não existe nenhum verbo ceber. O lingüista analisa de outro modo
e, deixando o português, remonta ao latim para decompor o dito verbo em re +
cipere < re + capere" (ALI [1931] 19643: 231). Mas o
método de ascender às mais remotas origens apresenta, segundo Ali ([1931] 19643:
231), alguns problemas, uma vez que "o sentimento de linguagem é fator
essencial, sem o qual as formas e creação de palavras perderiam sua
significação. E muito de levar em conta é esse sentimento se, diversificado da
língua‑mãe, aparece desde a constituição do novo idioma e assim se conserva até
os nossos dias". Ali ([1931] 19643) reclama, deste modo, que,
quando formas como esquecer e receber, sincronicamente, já não
são decomponíveis, devem ser consideradas palavras simples, embora se deva
indicar que, numa fase mais antiga, eram derivadas.
Na "Derivação Sufixal", o autor procede a um levantamento e
descrição de grande fôlego dos sufixos formadores de "Substantivo e
Adjetivo" e de "Verbos": fornece as indicações etimológicas de
sufixos e de alguns derivados, estuda as diferentes significações que os
sufixos transmitem às bases, aponta os casos em que se verificam alomorfias e
dá variadíssimos exemplos, remetendo para as fontes de onde foram retirados.
A partir da descrição da derivação sufixal levada a cabo por Ali
([1931] 19643) e pelos restantes gramáticos históricos pode, assim,
observar-se que:
1. em certos casos, não fica claro se o principal critério para o
reconhecimento de um sufixo derivacional é de ordem formal ou semântica, embora
pareça ser o primeiro aquele que é escolhido, dado que, muitas vezes, o sufixo
é tido como uma seqüência que ocorre em mais do que um vocábulo, mesmo que o
conteúdo semântico dessa seqüência seja dificilmente assinalável (cf. a
definição de sufixo em Braga (1876: 32) e Pereira ([1916] 19359:
202) e a definição de derivação em Câmara Jr. (1975: 213)). Daí a confusão que,
por vezes, existe entre sufixo e "terminação", i.e., seqüência de
fonemas que ocorre em dois ou vários vocábulos (por exemplo, –ego, em borrego
e labrego, não é sufixo do português, dado que estas formas foram
tomadas de empréstimo ao castelhano);
2. embora se considere que o sistema sufixal, tal como outros sistemas
lingüísticos, se caracteriza pelas suas mutações (certos sufixos desapareceram
enquanto outros foram surgindo; os modos de emprego alteraram-se e
condicionaram-se mutuamente; as relações entre sufixos tanto são de oposição
como de paralelismo com outros sufixos) e se bem que, como já referi, exista
quase sempre a preocupação de definir "sufixos vivos e sufixos
mortos", não há uma delimitação evidente entre, por um lado, os derivados
formados com sufixos disponíveis em português e os vocábulos herdados e, por
outro, entre sufixos que se usavam em latim e grego e que passaram para o português
mantendo a sua vitalidade e os que não foram adotados[3], como por exemplo –escer, já que os verbos
do tipo de florescer e remaescer não foram formados em português,
sendo todos eles formas latinas;
3. a principal função que se atribui ao sufixo é a de alterar
freqüentemente a categoria gramatical da palavra a que se junta, ou seja,
contrariamente ao prefixo, que não interfere na categoria da palavra que é
prefixada, o sufixo é por excelência um categorizador. Contudo, também se
salienta a modificação do "valor" da palavra "primitiva",
sobretudo no caso dos aumentativos e diminutivos, os quais, apesar de não
desencadearem alterações categoriais, exprimem a grandeza ou a diminuição e têm
uma conotação afetiva ou pejorativa. Embora os gramáticos históricos não o
explicitem, poderíamos encontrar ainda uma terceira função dos sufixos, i.e., a
de remeterem para um determinado campo lexical, como é por exemplo o caso de –ite,
do grego, o qual é sobretudo usado na medicina para designar 'inflamação';
4. são normalmente duas as condições apontadas para a disponibilidade
de determinado sufixo: que exista uma relação transparente entre o sufixo e a
base ou, como diz José J. Nunes ([1919] 19899: 362), que sufixo e
base sejam perfeitamente isoláveis, apresentando ambos "idéias bem claras,
bem nítidas e distintas", e que o sufixo tenha capacidade para formar
novos derivados; inversamente, quando tal deixa de acontecer, o sufixo perde produtividade.
No entanto, as possibilidades de combinação dos sufixos com as bases são
unicamente afloradas e raramente são dadas indicações acerca da maior ou menor
independência das bases. No caso das restrições impostas pelos sufixos às
bases, os gramáticos raramente lhes fazem referência: Manuel P. da Silva Jr. e Lameira
Andrade ([1887] 19134: 336)
são os poucos gramáticos que assinalam explicitamente que "alguns suffixos
suppõem certas categorias de palavras", como é o caso do
sufixo –mento, que se solda unicamente a bases verbais);
5. o conceito de analogia, um dos mais caros aos neogramáticos, embora
nem sempre seja definido, é amplamente utilizado pelos gramáticos históricos ao
longo do estudo da derivação sufixal. Quase todos realçam o papel da analogia
na mudança lingüística, neste caso ao nível da morfologia derivacional, e,
implicitamente, o seu contributo, como bem expressa Molino (1985: 37), para que
a morfologia e o léxico constituam "o domínio onde interagem (...) o
sistema e a história".
6. alguns exemplos tidos como derivados do português são, como já
mencionei, formas eruditas, enquanto outros são empréstimos de outras línguas,
sobretudo do castelhano e do francês. Neste último caso, trata-se de
empréstimos lexicais e não sufixais, mas esta distinção quase nunca é efetuada
nas gramáticas em análise: Mattoso Câmara Jr. (1975: 218) é o único que
salienta expressamente este aspecto, quando declara que "a produtividade
de um sufixo, que lhe dá individualidade na gramática da língua portuguesa, decorre
do seu destaque de palavras derivadas que vieram tais do latim ou, por
empréstimo, de outra língua".
Como conseqüência dos aspectos anteriormente assinalados
(especialmente nos pontos 1 e 2), não há, nas gramáticas históricas do
português unanimidade quanto ao número de sufixos e, muito menos, quanto às
variantes de determinados sufixos.
Conclusões
Apesar de as gramáticas históricas do português serem por vezes
criticadas pela falta de sistematicidade na inventariação e classificação dos
dados que apresentam e pela falta de definição clara dos critérios seguidos nas
análises efetuadas, gostaria de concluir esta intervenção com uma apreciação
positiva dessas obras, em particular da Gramática Histórica de Said Ali
([1931] 19643), cujas descrições e reflexões fazem ainda hoje parte
dos debates acerca da formação de palavras, como sejam:
– a distinção entre flexão e derivação e entre derivação e composição;
– a noção de alternância entre sufixos "eruditos" e
"populares" – os conceitos de produtivo e improdutivo.
A fronteira que hoje estabelecemos entre derivação e composição,
baseando-nos essencialmente no fato de a primeira operar com afixos, nem sempre
é clara e nalgumas gramáticas históricas é ainda menos nítida, considerando-se,
por vezes, que o termo "derivadas abrange tanto as palavras obtidas por
derivação como as obtidas por composição, como as obtidas simultaneamente por
derivação e composição" (Sequeira,
1938b: 92)[4]. Mas, apesar de não haver
concordância quanto aos limites da derivação e da composição, todos os
gramáticos são unânimes em afirmar que a derivação e a composição são processos
regulares de formação de palavras e aqueles que mais contribuem para o
enriquecimento do léxico, merecendo, por essa mesma razão, um tratamento mais
desenvolvido do que outro tipo de criações lexicais.
Enquanto outros autores tentam explicar as "irregularidades"
e "alomorfias" que se manifestam a nível sincrônico, os gramáticos
históricos consideram que o sistema sufixal, tal como outros sistemas
lingüísticos, se caracteriza pelas suas mutações, sendo resultante de etapas
anteriores e que o português (assim como as outras línguas românicas) herdou do
latim não somente palavras, mas também mecanismos de criação de palavras. Como
a noção de relação derivativa que hoje amplamente empregamos não é em tudo
coincidente com a dos gramáticos históricos, percebe-se porque é que para estes
alguns sufixos "eruditos" (assim chamados por seguirem de perto a
forma latina) possuem contrapartes "populares", enquanto para nós o
fato de determinados elementos ocuparem uma posição sufixal não significa que
eles façam parte do sistema derivacional do português.
Se para alguns morfólogos, como por exemplo Baayen (1992 e 1993), as
propriedades das regras para gerarem novas palavras estão relacionadas com a
norma[5], para outros (cf., por exemplo, Bauer (2001)), a
produtividade faz parte da competência, é uma propriedade estrutural,
pertencendo, por isso, à gramática. Deste modo, enquanto uns se baseiam numa
noção quantitativa de produtividade, outros privilegiam uma noção qualitativa.
Por outro lado, não se deve confundir improdutividade e irregularidade: os
processos que hoje já não são produtivos, foram-no outrora, mas tal não
autoriza a que os consideremos como não regulares.
Termino, pois, acentuando que, tal como antevisto por Ali ([1931] 19643),
os recursos derivacionais de que dispomos são previsíveis e regulares, tanto do
ponto de vista formal como semântico. O sistema sufixal do português não se
caracteriza nem pelo seu caráter anárquico, nem por obedecer em todos os casos
ao princípio de economia (cf. Mitterand,
19867: 47): assim como não podemos empregar indiferentemente uma
dezena de sufixos que denotem o mesmo valor, a um determinado valor não
corresponde sempre uma só forma.
Referências Bibliográficas
BAAYEN, Harald.
"Quantitative Aspects of Morphological productivity". In:
BOOIJ, Geert e Jaap van MARLE (eds.) Yearbook of Morphology 1991, Dordrecht, The Netherlands, Kluwer Academic Publishers, 1992,
p. 109-149.
BAAYEN, Harald.
"Discussion on frequency, transparency and productivity". In:
BOOIJ, Geert e Jaap van MARLE (eds.) Yearbook of Morphology 1992, Dordrecht: The Netherlands, Kluwer Academic Publishers, 1993,
p. 181-208.
BAUER, Laurie. Morphological
Productivity, Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
CAETANO, Maria do Céu. A
Formação de Palavras em Gramáticas Históricas do Português. Análise de
algumas correlações sufixais, dissertação de Doutoramento apresentada à
Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2003.
MALKIEL, Yakov. "A
Tentative Typology of Romance Historical Grammars". In: Essays
in Linguistic Themes, Oxford, Blackwell, 1960, p. 71-164 (também em Lingua
IX-4, 1968)
MARTINS, Ana Maria. "Gramáticas Históricas do Português" In:
DUARTE, Inês e Maria MIGUEL (eds.) Actas da Associação Portuguesa de
Linguística (Lisboa, 1995). Lisboa: Colibri, 1996, vol. III, p. 53-71.
MITTERAND, Henri. Les Mots Français, Paris: PUF, 19867.(Que
sais-je?, nº 270).
MOLINO, Jean. "Où en
est la morphologie?", Langages 78, 1985, p. 5-40.
[1] 1ª ed. 1921, reproduzido na Gramática Histórica.
[2] Excluí a gramática de Silva Jr.
(1878), dada a sua estrutura peculiar.
[3] Carl von Reinhardstoettner (1878),
José J. Nunes [1919] 19899) e Carolina Michaëlis de Vasconcellos
([1946] s/d.) constituem excepções a esta generalização, visto que são dos
poucos que procedem a essa separação de uma forma clara.
[4] Quando Sequeira (1938b: 92) alude às
formas "obtidas simultaneamente por derivação e composição" está a
referir-se às formações que designamos por parassintéticos.
[5] Os trabalhos do autor baseiam-se em corpora.
Neles, a produtividade e a freqüência estão intimamente relacionados e
defende-se que a análise das freqüências contribui para uma melhor compreensão
do fenômeno da produtividade.
Anexo 1
Gramáticas históricas do português
em que é estudada a formação de palavras
Gramáticas históricas do português
em que é estudada a formação de palavras
Ali, Manuel Said. Gramática Histórica da Língua
Portuguesa, São Paulo, Edições Melhoramentos, [1931] 19643.
Braga, Teophilo. Grammatica Portugueza Elementar (Fundada
sobre o methodo historico-comparativo). Porto: Livraria Portugueza e
Estrangeira, 1876.
Câmara Jr., Joaquim Mattoso.
História e Estrutura da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Padrão, 1975.
Coutinho, Ismael de Lima. Pontos de Gramática Histórica.
São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1938.
Horta, Brandt. Noções de Gramática Histórica da Língua
Portuguesa. Rio de Janeiro: J. R. de Oliveira, ([1930?] s/d.3.
Huber, Joseph. Gramática do Português Antigo.
(Trad. port. do original alemão Altportugiesisches Elementarbuch).
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, [1933] 1986.
Martins, Jaime de Sousa. Elementos de Gramática Histórica,
São Paulo: Cia. Ed. Nacional, [s.d.] 19372.
Mota, Othoniel. O meu idioma. São Paulo: Cia. Ed.
Nacional, [1916] 19378.
Nunes, José Joaquim. Compêndio de Gramática Histórica
Portuguesa (Fonética e Morfologia). Lisboa: Clássica, [1919] 19899.
Pereira, Eduardo Carlos. Gramática Histórica. São
Paulo: Cia. Ed. Nacional, [1916] 19359.
Reinhardstoettner, Carl von. Grammatik
der Portugiesischen Sprache. Strassburg: Karl J. Trübner, 1878.
Sequeira, Francisco Júlio Martins. Gramática Histórica da
Língua Portuguesa. Lisboa: Popular, [1938a] 19593.
Sequeira, Francisco Júlio Martins. Gramática de
Português. Lisboa: Popular, 1938b.
Silva Jr., Manuel Pacheco da. Grammatica Historica da
Lingua Portugueza. Rio de Janeiro: Typ. A Vapor de D. M. Hazlett, 1878.
Silva Jr., Manuel Pacheco da e Lameira de Andrade. Grammatica
da Lingua Portugueza. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, [1887] 19134.
Vasconcellos, António Garcia Ribeiro. Gramática Histórica da
Língua Portuguêsa. Paris/Lisboa: Aillaud/Alves; Rio de Janeiro/São
Paulo/Belo Horizonte: Francisco Alves, 1900.
Vasconcellos, Carolina Michaëlis de. Lições de Filologia
Portuguesa. Lisboa: Revista de Portugal / Dinalivro, [1946] s/d.
Vasconcellos, José Leite de. Lições de Filologia Portuguesa.
Rio de Janeiro: Livros de Portugal, [1911] 19593.
Anexo 2
– Áreas Disciplinares consignadas nas GHP[1]
– Áreas Disciplinares consignadas nas GHP[1]
T. Braga (1876)
|
|
Fonol
|
Morf
(Flex+ FP)
|
|
|
Sint
|
|
|
Reinhardstoettner
(1878)
|
Fonét
|
Fonol
|
Flex
|
|
FP
|
Sint
|
|
|
M. P. Silva Jr.
e L. Andrade ([1887] 19134)
|
|
Fonol
|
Morf
(Flex+ FP)
|
|
|
Sint
|
Sem
|
Léx
|
A. R. Vasconcellos
(1900)
|
Fonét
|
|
Morf (Léx+
Flex + FP)
|
|
|
Sint
|
|
|
Leite Vasconcellos
([1911] 19593)
|
|
Fonol
|
|
|
FP
|
Sint
|
Sem
|
Léx
|
E. C. Pereira
([1916] 19359)
|
Fonét
|
Fonol
|
Morf
|
|
|
Sint
(Flex)
|
Sem
|
Léx
(FP)
|
O. Mota
([1916] 19378)
|
Fonét
|
Fonol
|
Morf (Flex)
|
|
FP
|
|
|
|
J. J. Nunes
([1919] 19899)
|
Fonét
|
|
Morf
(Flex+ FP)
|
|
|
|
|
|
B. Horta
([1930?] s.d.3)
|
Fonét
|
|
Morf
(Flex+ FP)
|
|
|
|
|
|
M. Said Ali
([1931] 19643)
|
Fonét
|
|
|
Voc (Flex)
|
FP
|
Sint
|
Sem
|
Léx
|
J. Huber
([1933] 1986)
|
Fonét
|
|
Morf (Flex.)
|
|
FP
|
Sint
|
|
|
J. S. Martins
([s.d.] 19372)
|
Fonét
|
|
Morf
(Flex+ FP)
|
|
|
|
|
|
F. J. M. Sequeira
([1938a] 19593)
|
Fonét
|
|
Morf (Léx + Flex + FP)
|
|
|
Sint
|
|
|
F. J. M. Sequeira
(1938b)
|
Fonét
|
|
Morf (Léx + Flex + FP)
|
|
|
Sint
|
|
|
I. Coutinho
(1938)
|
Fonét
|
|
Morf (Flex)
|
|
|
|
|
Léx (FP)
|
C. M. Vasconcellos
([1946] s.d.)
|
|
|
|
|
FP
|
|
Sem
|
Léx
|
M. Câmara Jr.
(1975)
|
|
Fonol
|
Morf (Flex)
|
|
|
Sint
|
Sem
|
Léx (FP)
|
[1] Flex(ão), Fonét(ica), Fonol(ogia), FP (Formação de
Palavras), Léx(ico), Morf(ologia), Sem(ântica), Sint(axe), Voc(ábulos).
"Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e a arte de representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana. Não é o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso." Fernando Pessoa
ResponderExcluir“É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade.” Nise da Silveira
“Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”. Paulo Freire
“Todo mundo deve inventar alguma coisa, a criatividade reúne em si várias funções psicológicas importantes para a reestruturação da psique. O que cura, fundamentalmente, é o estímulo à criatividade”.Nise da Silveira
“Eu sou um intelectual que não tem medo de ser amoroso, eu amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo, que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade.” Paulo Freire
“Conhecer é tarefa de sujeitos, não de objetos. E é como sujeito e somente enquanto sujeito, que o homem pode realmente conhecer.”
Paulo Freire
A esperança é arma que nos move para continuarmos lutando.
Anisia Nascimento
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